terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

ARTIGOS SOBRE CONFLITOS NO QUÊNIA

Retirado do site do IBASE.


Maurício Santoro
A crise política no Quênia despertou a atenção mundial por se tratar de um dos países mais desenvolvidos economicamente da África, fundamental para a estabilidade de toda a costa oriental do continente. Contudo, a classificação de “conflito étnico” para descrever a situação atual é um tanto apressada, pois os embates no Quênia misturam disputas de classe, demandas com relação ao Estado, protestos contra a corrupção e rivalidades entre as etnias que formam o país.

O Quênia tem cerca de 40 etnias, sendo que a principal são os kikuyu, que constituem cerca de 22% da população. Quando o país era colônia britânica, esse povo foi sistematicamente expulso de suas férteis terras para dar lugar a ocupantes europeus. A reação veio na forma da revolta dos Mau Mau, na década de 1950, um dos marcos mais importantes das lutas de libertação colonial na África. A geração de líderes que conquistou a liberdade dos britânicos, em 1963, incluía representantes de diversas etnias: kikuyos, luos, kalenjin. O primeiro presidente foi Jomo Kenyatta, kikuyu, mas o kalenjin Daniel arap Moi foi o político que mais tempo passou à frente do país. Ele governou de 1978 a 2002, num regime marcado por autoritarismo e corrupção.

A ditadura de Moi foi substituída por um sistema multipartidário, liderado pelo presidente Mwai Kibaki, um kikuyu. Inicialmente, ele buscou alianças com os luos, representados por Raila Odinga. Mas as disputas por poder fizeram com que os dois se tornassem inimigos. No governo Kibaki a economia cresceu, impulsionada pelas exportações do agronegócio e pelo turismo – o Quênia é famoso por suas reservas ecológicas, praias e sítios arqueológicos. No entanto, a prosperidade não atingiu a camada mais pobre da população, que se ressente das precárias condições de vida, da corrupção e dos altos índices de desemprego.

Em dezembro de 2007, Odinga disputou a presidência com Kibaki, que tentava a reeleição. As pesquisas indicavam que seria uma corrida acirrada e havia preocupação de que o lado derrotado não aceitasse os resultados. Foi exatamente o que ocorreu, com Odinga acusando Kibaki de ter fraudado as eleições. Os partidários da oposição, revoltados, foram às ruas e os protestos se tornaram violentos, com o ódio canalizado contra a etnia dominante dos kikuyu e concentrado geograficamente nas favelas de Nairobi e no Vale Rift - região onde as disputas fundiárias são mais intensas.

Os acontecimentos mais brutais do confronto, no qual morreram mais de 600 pessoas, lembraram os do genocídio em Ruanda, com grupos armados assassinando pessoas da etnia rival, como na queima de uma igreja na cidade de Eldoret onde se abrigavam pessoas refugiadas. Porém, é preciso atentar para o fato de que a política queniana é marcada por alianças e coalizões entre diversos grupos étnicos, até porque nenhum deles é capaz de impor sozinho seu domínio. Os principais líderes do país trabalharam juntos, em governos que atravessaram as barreiras étnicas. Kibaki e Odinga, por exemplo, foram ministros do ex-presidente Moi. O ódio racial é principalmente uma válvula de escape para tensões econômicas e sociais, como o desemprego, as disputas por terra e a revolta contra a corrupção dos líderes.

Estados Unidos e a União Européia investiram muito dinheiro no Quênia e apostaram em Kibaki para a construção da democracia após 25 anos de ditadura de Moi. Embora essa opção tenha se mostrado errada, os países ricos se mostraram relutantes em abandoná-lo e aceitaram sua declaração de vitória eleitoral, pressionando-o apenas para que inclua em seu governo os líderes da oposição, de modo a acalmar o descontentamento e tentar chegar a algum tipo de pacto de governabilidade.

As preocupações internacionais se devem à importância econômica do Quênia para a África oriental. Seus portos e estradas garantem o abastecimento de Uganda, Ruanda, Burundi e partes significativas da República Democrática do Congo. São países marcados por conflitos muito graves, nos quais a escassez de combustíveis ou de produtos industriais pode resultar em novas ondas de violência numa região já bastante conflagrada.

Publicado em 18/1/2008.

Classes e parentescos nos campos da morte do Quênia
Oduor Ong’wen (Jornalista, membro do Fórum Social Africano)
Tradução: Patrick Wuillaume

É fácil – e até mesmo tentador – rotular a violência que tomou conta do Quênia durante os últimos meses como um ressurgimento lamentável, mas não totalmente inesperado, das disposições atávicas ontológicas africanas. Muitos analistas, particularmente no Ocidente, alegaram que embora a ruptura do estado de paz e convivência mútua tenha sido desencadeada pelas fraudes do atual presidente nas últimas eleições, o que se seguiu nada tinha a ver com isso em particular nem com a política em geral. Teria a ver com uma oportunidade para que vizinhos – fundados sobre um nacionalismo estreito e que haviam vivido até então em harmonia artificial, embora guardando um desprezo patológico mútuo pudessem acertar contas uns com os outros. Isso pode ser verdade, mas apenas em parte. A crua realidade é que a crise do Quênia pôs à mostra as tensões de classe que vinham aflorando de modo esparso há mais de cem anos.

Em maio de 2000, a revista The Economist surpreendeu o mundo com uma edição em que aparecia a foto de um jovem portando um foguete lançador de granada, comumente chamado pelas guerrilhas de RPG. Essa imagem se sobrepunha a um mapa da África e era acompanhada do título de capa: A Incurável África. Com esta única frase de impacto, todos nós africanos, desde os diligentes fazendeiros do delta do Nilo até os criadores de gado de Botsuana, dos ativos pescadores em torno das planícies Kano do Lago Vitória aos comerciantes do mercado Kano da Nigéria, fomos, de forma sumária, relegados da ordem da humanidade civilizada para uma única realidade ignominiosa: a autodestruição.

A mesma publicação admitira, numa de suas edições de janeiro de 2008, que o Quênia representava uma esperança para a África. Qual esperança? Infelizmente, seria a existência de uma atuante bolsa de valores, de lojas do tipo fast-food em cada esquina de Nairóbi, de prósperos cassinos, de campos de golfe bem tratados e de uma indústria em crescimento. Silenciava-se, entretanto, sobre o fato de que dois terços dos habitantes de Nairóbi ocupam apenas 8% da área da cidade, vivendo em favelas; que mais de 63% da população urbana não têm acesso à água potável; que dois em cada três quenianos sobrevivem com menos de US$1 por dia e que grandes extensões de terra pertencem a alguns poucos enquanto o número dos sem-teto e dos sem-terra aumenta cada vez mais.

Virtualmente afastada dos benefícios da prosperidade e da modernidade de que desfruta o Norte, a África sobrevive e existe na periferia da economia global. Não surpreende que, enquanto os observadores da União Européia, do Commonwealth, e a equipe de observadores locais reconheciam o fato de que as eleições presidenciais tinham sido fraudadas, o Ocidente insistia que, por se tratar da África, a subversão deveria ser ignorada "para o bem da unidade e da estabilidade do país". Esse eufemismo pode ser traduzido, na verdade, pela frase "nossos interesses estratégicos, nossos investimentos, nossas férias e safáris são mais importantes do que seus direitos democráticos; portanto, calem-se, acreditem e obedeçam".

Outrora consideradas sem contestação como o repositório da cultura, as culturas dos povos africanos estão sendo rapidamente postas à margem à medida que a cultura McDonald, orgulhosamente promovida pelo cinema e pela televisão, assume seu lugar. Essa erosão da cultura africana está sendo vista como algo positivo – a integração da África à nossa sociedade global – e deve ser incentivada.

Para ler o artigo na íntegra clique aqui.

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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.