Entrevista retirada do jornal Folha Dirigida (15-01-08)
Um retrato em branco e preto das desigualdades raciais
15/01/2008
Alessandra Moura Bizoni
Estudo revela o tamanho do abismo da formação escolar entre brancos e negros no Brasil, bem como alerta que a escola, os professores e os livros didáticos, como estão formatados hoje, mais reproduzem do que combatem a desigualdade e os preconceitos.
O quarto capítulo do 1º Relatório das Desigualdades Raciais no Brasil revela o hiato entre os níveis de escolarização de brancos e negros no país. Embora os dados indiquem um período estimado de 17 anos para sanar as diferenças entre os anos de estudo dos dois grupos da população, o economista Marcelo Paixão salienta que os negros chegam a sofrer três vezes mais as mazelas do sistema educacional brasileiro.
Coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), Marcelo Paixão apresentou recentemente os dados relativos à educação. Mas, até o final de março, deve ser divulgado o 1º Relatório das Desigualdes Raciais no Brasil, que contempla aspectos como evolução demográfica, taxas de mortalidade, políticas públicas, acesso à escolaridade e ao mercado de trabalho, bens de uso coletivo (como água, esgoto) à mídia e à universidade.
Além disso, em março, Marcelo Paixão lançará o livro "A dialética do bom aluno", no qual aponta caminhos para a transformação da escola e do espaço escolar. "A história dos negros nos livros didáticos termina com a abolição da escravidão. Ora, se havia escravos também havia os escravizadores. Essa relação deve estar presente nos livros, em suas duas polaridades. Nós somos o segundo maior país em população negra no mundo, perdendo apenas para a Nigéria. E não temos essa realidade retratada nos livros", argumenta o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ao qual o Laeser pertence.
Sua pesquisa feita pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser) do Instituto de Economia da UFRJ indica que restam, pelo menos, 17 anos para sanar o hiato entre os níveis de escolarização de brancos e negros no Brasil. Como o sr. avalia esse dado?
Marcelo Paixão - A escolaridade da população negra se coloca no cerne deste debate que remete a um pano de fundo histórico. No período escravista, era proibido que a população escrava tivesse acesso às letras. E quando pegamos dados, lá pelos idos de 1950, verificamos que quase 70% da população negra no Brasil era analfabeta. Isso significa que, 70 anos após a abolição da escravidão, sete em cada dez negros eram analfabetos. Na verdade, essas assimetrias de nível de escolaridade entre a população afrodescendente e a população branca se manteve por todo esse período. Sabemos que isso não é fruto do acaso, e sim do "descaso". E durante os últimos 20 anos, entre os anos 80 e início da década de 90, ainda encontramos uma persistente resistência nas assimetrias entre um grupo e outro, em relação aos anos de estudo. Ainda nessa década, entre 1980 e 2000, encontramos uma estabilidade muito grande. A distância fica na média de dois anos, quando se fala em anos de estudo da população com mais de 15 anos de idade.
E o que aconteceu mais recentemente, nesse período detalhado em sua pesquisa, que vai de 1995 a 2006?
Nesse intervalo, o indicador dos negros melhorou 1,9 anos e o dos brancos cresceu 1,6 anos. Ou seja, uma desigualdade que se mantinha na casa dos dois anos de escolaridade obedeceu a uma pequena redução de 0,3 anos. Ou seja, ao projetar esses dados em termos de média geométrica de um ou de outro, para um empatar com o outro, demoraria 17 anos. Se consideramos que o nível fundamental é de oito anos — embora o ensino fundamental com nove anos esteja plenamente implementado somente em 2010 —, ainda teríamos duas gerações aonde haveria a persistência de desigualdade. Não há nenhuma garantia de que, daqui para frente, os níveis de escolarização dos negros continuarão crescendo. Pode haver uma queda. Por isso, esse estudo aponta apenas o tamanho de um "gap". Esse estudo é muito mais um sinalizador de assimetrias do que um exercício de futurologia. Por outro lado, o estudo revela que já houve uma melhora de ambos os lados e que o "gap" entre os dois grupos encolheu. Mas esses dados ainda não são robustos para que se possa dizer que essas desigualdades estão sendo anuladas, com exceção de um ou outro indicador.
Quais são as principais diferenças entre o nível de escolarização de brancos e negros no Brasil?
Hoje, praticamente 98,8% da população de brancos e 97,7% de negros entre sete e 14 anos de idade — a população em idade escolar para freqüentar o ensino fundamental — já está na escola. É uma diferença de 1,1%.
Então, somente com a universalização do acesso ao ensino fundamental, ocorrido na segunda metade da década de 90, é que houve uma aproximação efetiva entre o nível de escolaridade dos dois grupos?
Exatamente. Mas quando se fala em taxa de cobertura do sistema de ensino, não importa se o garoto de 14 anos está na primeira série do ensino fundamental: ele está na escola. Esse dado revela se as crianças estão freqüentando a escola, mas oculta da taxa de repetência, a defasagem, o abandono. Como esse tema é muito caro ao Brasil e às agências internacionais, existem vários indicadores que calculam o acesso ao ensino. Existe um que é muito conhecido entre os especialistas, que é a taxa bruta de escolaridade. A taxa bruta de escolaridade é quando se pega a população que está freqüentando a escola e se divide pela população que tem a idade compatível para freqüentar um determinado nível de ensino. A idade correta para o ensino fundamental é de sete a 14 anos (daqui a pouco tempo será de seis a 14 anos); a do ensino médio é de 15 a 17 anos; e a do ensino superior é de 18 a 24 anos.
Atualmente, qual é a dimensão do hiato entre a escolarização de brancos e negros?
A taxa bruta de escolaridade dos negros é de 121,9%, em 2006. E o das crianças brancas é de 114,3%. Isso reflete que a distorção idade/série entre os negros é maior. Esse indicador revela que a população negra está indo para a escola num nível que jamais ocorreu, mas é preciso ressalvar que a população está indo para a escola, mas está apresentado níveis de defasagem que são muito pronunciados. Outro indicador que é importante relevar é a relação idade/série. Se eu tenho oito anos e estou na primeira série, tenho defasagem de um ano. Se eu tenho nove anos e estou na primeira série, tenho defasagem de dois anos. No primeiro ciclo do fundamental, em 2006, a distorção idade/série é de 0,8 anos para brancos e de 1,68 anos para os estudantes negros.
Que avaliação o sr. faz da evolução desse quadro ao longo das últimas décadas?
Ocorreu a redução das distâncias relativas entre os níveis de escolarização de brancos e negros, mas as distâncias ainda são muito grandes. A população negra está indo para a escola, principalmente o grupo entre sete e 14 anos, mas há hoje um nível de defasagem e de abandono dos bancos escolares que ainda mostra que esse problema da baixa qualidade do sistema de ensino no Brasil afeta mais a população negra do que a branca. Um indicador interessante é a taxa de adequação ao sistema de ensino, que verifica se a criança está na escola e na série correta. Se a criança está na escola fora da série correta ou se ela está fora da escola, ela está inadequada ao sistema de ensino. No primeiro ciclo do ensino fundamental (7 a 10 anos), em 2006, 62,2% das crianças brancas estão adequadas; e entre as crianças negras o índice é de 52,2%, uma diferença de dez pontos percentuais. Analisando esse mesmo indicador com relação ao segundo ciclo do ensino fundamental (crianças de 10 a 14 anos), os índices são de 49,8% para crianças brancas e 33,1 entre as crianças negras. Esses dados são muito ruins, pois indicam que metade das crianças brancas nesta idade está fora da escola ou na série inadequada. E, para os negros, os números demonstram que, em cada dez crianças nesta faixa etária, sete estão fora da escola ou na série inadequada. Entre os 15 e 17 anos, esse indicador é de 37,4% entre os brancos e 19,3% entre os negros. Ou seja, oito em cada dez crianças negras nesta faixa etária estão fora da escola ou estão estudando na série errada.
Como são os indicadores para o ensino superior?
No período estudado entre 1995 e 2006, a taxa bruta de escolaridade do ensino superior (população freqüentadora da universidade independentemente da idade que possua divido pelo número de pessoas com idade entre 18 e 24 anos) entre os brancos passou de 13,1% para 30,7%; entre a população negra esse indicador evolui de 3,3% em 1995 para 12,1 em 2006. O indicador melhorou, mas quando se parte de um nível de 3,3%, qualquer melhoria vai dar um pulo. Quando pegamos a taxa líquida de escolaridade (população entre 18 e 24 anos que está efetivamente na universidade divido pela população com idade entre 18 e 24 anos) verificamos que entre 1995 e 2006, a população branca pulou de 9,2% para 19,5% e a população negra pulou de 2% para 6,3% nesse mesmo período. Nesse nível de ensino, as desigualdades são gritantes. Se analisarmos o total de jovens negros entre 18 e 24 anos, praticamente 94% estão fora deste nível de ensino. Quando faço minha pesquisa, penso nos dois grupos - brancos e negros. Com relação aos brancos, os índices também são ruins. Só que existe um grupo três vezes mais penalizado do que o outro.
Com relação ao acesso ao ensino privado, qual é a diferença entre negros e brancos?
A grande maioria de jovens brasileiros entre 7 a 14 anos estuda em escola pública: são 81,3% dos brancos e 91,7% dos negros. Por outro ângulo, significa que tenho 19,7% dos brancos em escola privada e 8,3% dos negros no ensino privado. O número de crianças brancas em escolas privadas é quase que o dobro do número de crianças negras. Há uma deficiência muito grande de jovens brasileiros com relação ao acesso à universidade e isso está relacionado com esses dados que acabamos de apresentar. Quando pegamos esse indicador na faixa de 15 a 17 anos, 79% estão na rede pública e 23% na privada. Os números mostram o nível de dependência dos jovens do Brasil da escola pública.
E qual é saída para tal situação?
A escola pública precisa melhorar seu nível de qualidade para que essa desigualdade seja sanada. Eu não acho que essa questão da qualidade seja uma questão apenas de pré-escola. Acredito também em uma discussão sobre os conteúdos pedagógicos apresentados em sala de aula. É preciso que cada escola tenha biblioteca, computadores. Mas se não houver um elemento na escola que seja mais receptivo à constituição de um ambiente pró-diversidade, pró-multiculturalismo... Se essas práticas pedagógicas — que muitas vezes incorporam elementos muito preconceituosos e discriminatórios — permanecerem no espaço escolar, ainda assim as desigualdades vão estar presentes. Tivemos no Brasil, a partir da aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), iniciativas importantes no sentido de pensar o espaço escolar criticamente. O professorado tem que receber mais. Eles precisam ter dedicação exclusiva à instituição para qual trabalham. Hoje todo professor deveria ter de graça um notebook e acesso à internet. É preciso que haja um investimento nas escolas que, muitas vezes, são o primeiro lar de algumas crianças de áreas de periferia.
O que Estado pode fazer para sanar esse hiato?
É preciso haver, ao mesmo tempo, aumento nos investimentos em educação e a criação de uma cultura em defesa da igualdade entre diferentes do espaço escolar. Precisamos ter igualdade entre os diferentes. As diferenças vão desde os alunos que têm dificuldade de locomoção e de enxergar, até os alunos negros. A nossa educação ainda é muito formatada por padrões estranhos à realidade dos jovens.
De que forma as relações raciais devem ser abordadas nas salas de aula?
O combate ao racismo deveria ser tratado como uma questão pedagógica?O campo que tem tido relativo avanço com relação aos estudos raciais é o da área de Educação. Há muitos estudiosos no setor trabalhando com esse tema. Na análise desses estudos, percebe-se diferença no tratamento das crianças em sala de aula, uma questão que Eliane Cavalero fala, que é a pedagogia do silêncio. A criança sofre uma agressão racial em sala de aula e há um despreparo do ambiente escolar para trabalhar com esse problema, que acaba comprometendo o rendimento escolar. E, se uma pessoa já tem dificuldades econômicas para prosseguir com seus estudos, e também tem ao mesmo tempo dificuldades motivadas por discriminações, por preconceitos, é claro que haverá mais possibilidades de ter o desenvolvimento de seu aprendizado afetado.
E como o material didático deve se comportar com relação às questões raciais?
A questão dos livros escolares é muito importante. Tanto o material didático quanto o material paradidático ainda apresentam uma dificuldade muito grande de trabalhar com um ambiente diverso em sala de aula, apesar de ter havido todo um esforço derivado do Programa Nacional do Livro Didático para evitar que discriminações verbais ou óticas sejam veiculadas. Se a população tem essa sua marca da diversidade, essa diversidade deve estar nos livros, no material paradidático. Esse material deve servir para as pessoas construírem uma reflexão sobre suas práticas, sobre o que elas vêem no dia-a-dia. Se o livro didático brasileiro é fundamentado por padrões eurocêntricos, indiferentes à diversidade que forma o povo brasileiro, é claro que vai transformar o ambiente em sala de aula mais receptivo para um do que para outro.
Esta é uma questão presente nos cursos de formação de professores?
Se pegarmos as faculdades de Pedagogia Brasil afora, pouquíssimas são aquelas que têm as relações raciais em seus currículos. É notório que há uma deficiência. Mas falo isso como leigo, pois não sou da Faculdade de Educação. Sou economista. Existe a lei 10.639/2003, sobre o Ensino de História Africana e Afro-brasileira, que é muito importante. Ela trata da obrigatoriedade do ensino de história africana e da população afrodescendente na educação básica, principalmente para ser dada na disciplina de história. Acredito que essa lei contribui para quebrar um pouco a perspectiva eurocêntrica, que sempre marcou o ensino brasileiro. A história dos negros nos livros didáticos termina com a abolição da escravidão. Ora, se havia escravos também havia os escravizadores. Essa relação deve estar presente nos livros, em suas duas polaridades. Nós somos o segundo maior país em população negra no mundo, perdendo apenas para a Nigéria. E não temos essa realidade retratada nos livros escolares.
Até que ponto esse comportamento da escola, dos professores e do livro didático afeta a reprodução do preconceito?
A escola, do jeito que está hoje, ajuda a reproduzir desigualdades e não a superá-las. Só é possível superar desigualdades enfrentando-as. Essas assimetrias envolvem questões mais amplas. A escola é a segunda maior agência de socialização dos indivíduos na sociedade, ficando atrás somente da família. Principalmente numa sociedade moderna, quando outras agências que tinham papel importante, como a Igreja, não têm mais tanta influência assim. É evidente que temos uma sociedade racista e discriminatória, que leva pessoas de formato físico diferente a viver papéis sociais diferenciados. E a escola não é neutra com relação a isso. Então, buscamos uma reflexão sobre uma nova escola que forme um cidadão, um agente participativo da vida social. Essa escola, para a população negra no Brasil, ainda está por ser construída.
Como avalia as medidas afirmativas, como a adoção do sistema de cotas em universidades públicas?
As ações afirmativas não envolvem apenas cotas. A Lei 10.639/2003 carrega um princípio de ação afirmativa. Ou quando dizemos que o livro didático precisa ser mudado, que ele reconheça a diversidade do povo brasileiro. Esse é um princípio de ação afirmativa. As cotas são um debate que pega mais a universidade pública. O Prouni, desde que foi implantado em 2004 até 2006, atendeu cerca de 330 mil jovens. Mas o Prouni dá bolsas nas instituições privadas. Dentro delas, 30% das vagas foram reservadas para negros. Houve cerca de 60 mil negros beneficiados com vagas no Prouni. Isso não gerou polêmica. Por que será? Era uma vaga que sequer estava ocupada e por isso não criaria nenhum tipo de problema no interior daquela sociedade? Porque não afetaria ninguém? Se consideramos que o sistema universitário no Brasil tem cotas para as universidades públicas e privadas, a polêmica das cotas, hoje em dia, está toda centrada nas universidades públicas. Por que opera o princípio que é: "não mexe no meu". Por isso, setores médios e médios altos ficam preocupados com perdas quando se vai produzir uma redistribuição de vagas. Quando nós dizemos que somos a favor de ações afirmativas, através do mecanismos de cotas, em universidades, estamos querendo que, em determinadas profissões, o perfil seja mudado de tal maneira que se possa encontrar com facilidade, no futuro, médicos, jornalistas, economistas e outros "istas" negros. Sabendo que se isto não for aplicado hoje, dificilmente, no futuro, vai ser diferente. As cotas não são uma dádiva aos alunos das escolas públicas ou aos negros. As cotas representam um aspecto positivo dentro da própria universidade brasileira, tal como ela está formatada. A universidade brasileira hoje tem uma dívida para pagar com a sociedade brasileira. Há muitas questões dentro da universidade que não são temas de pesquisa. A universidade brasileira está formatada para pensar assuntos que dizem respeito somente aos segmentos médios e altos desse país. A mudança do público que vem para dentro da universidade não vai mudar por encanto essa realidade, mas pode ajudar. Esse público pode ajudar a trazer novas preocupações teóricas e epistemológicas. Temos, sim, a possibilidade de produzir um movimento histórico nesse país. Demoramos 120 anos para fazer esse tipo de política.
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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.