terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Acesso à universidade transforma a vida de cotistas


Para estudantes negros, ingresso ao Ensino Superior significa vitória
Publicado em 19/11/2007 - 12:00

O papel das IES na inserção dos negros
Por Lilian Burgardt
Um movimento em prol da inserção do negro na universidade começou a crescer e se expandir no Brasil recentemente. Em várias partes do país, Instituições de Ensino Superior passaram a adotar o sistema de cotas afim de facilitar o acesso destes estudantes, além de outras iniciativas terem ganho espaço e vida, como, por exemplo, a criação de universidades cuja principal missão é a inserção do negro no terceiro grau e o debate de sua marginalização na sociedade brasileira, com o objetivo de resgatar a identidade destes cidadãos.
Ainda não se pode medir com estatísticas fiéis se tais ações já surtiram efeitos significativos no que diz respeito à inclusão dos negros no Brasil. Para estes estudantes, porém, não há dúvida de que a inserção abriu portas e, agora, é possível enxergar um futuro melhor, com mais esperança. Esperança de que, daqui para frente, estatísticas como a publicada no mais recente estudo do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) sobre
"Escolaridade e Trabalho: Desafios para a População Negra nos Mercados de Trabalho Metropolitanos" (link pdf) possam mudar. O estudo apontou uma remuneração até 35% menor de negros com Ensino Superior, além de média cinco vezes menor de negros com 3º grau em relação aos brancos. As regiões pesquisadas foram: Belo Horizonte, Salvador, Recife, Porto Alegre, São Paulo e Distrito Federal.
Esta mudança de cenário é o que deseja a estudante do curso de Administração da Unipalmares (Universidade Zumbi dos Palmares), em São Paulo, Kátia Botelho, 22 anos. "Realizei o sonho de ser a primeira da família a entrar na universidade. Prestei vestibular várias vezes, mas embora fosse a melhor de minha turma na escola estadual, não conseguia uma vaga nos grandes vestibulares das instituições públicas e via meu sonho sempre adiado. Hoje, é uma vitória estar no Ensino Superior. Conquista que espero poder ver realizada por outros estudantes como eu", afirma ela.
Kátia ingressou na faculdade em 2004, e hoje, colhe os frutos de ter tido acesso ao Ensino Superior e apoio para crescer e se desenvolver. Por meio de um acordo da Unipalmares com empresas privadas, a estudante teve a oportunidade de estagiar numa grande companhia e, hoje, ter sido contratada. "Não poderia estar mais feliz. Quando entrei na universidade ganhava pouco mais do que o valor da mensalidade do curso. Tive dificuldade para me adaptar. Assim como qualquer estudante que veio do ensino público, muitas vezes, pensei que não ia conseguir. Esse resultado é uma grande vitória pessoal", disse Kátia emocionada logo após ter recebido a notícia da efetivação.
Para a estudante, a contratação é só um dos benefícios que o Ensino Superior proporcionou. Para ela, também é preciso destacar o complemento da formação com discussões sobre a inserção social do negro, sua participação no mercado de trabalho e a reconstrução de identidade, temas trabalhados na instituição afim de resgatar a cidadania destes jovens. "A universidade me ensinou a ter orgulho de minhas raízes e a valorizar a história de um povo que historicamente é marginalizado. Na universidade, ao contrário do que a mídia prega, a gente ouve que o negro não é só o 'pobre coitado' condicionado a ocupar sub-empregos, mas que temos potencial para muito mais", explica.

É essa a mensagem que também foi passada para a estudante Cláudia Regina Machado, 37 anos, que ingressou na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) pelo sistema de cotas. "Hoje, quando falo com meus três filhos e com o resto da criançada da comunidade sobre universidade é como se esse fosse um universo tangível e do qual eles querem fazer parte. Não é mais "a universidade" como se fosse impossível chegar lá", conta. Em suas conversas em casa e com os amigos, ela comenta que o fato de ter ingressado no Ensino Superior é motivo de orgulho e serve de espelho para os mais próximos. "Quando conto o que acontece em sala de aula, as discussões, eles ficam interessados e, agora, discutimos em casa sobre qual a carreira que eles vão seguir. Não há nada mais gratificante do que saber que sua atitude motiva outras pessoas a querer melhorar", diz Cláudia.
Batalhadora, a estudante decidiu voltar aos bancos escolares já adulta, casada e com três filhos. O sonho era antigo. "Sempre que passava em frente ao prédio da UERJ pensava: "ainda vou estudar ali, ainda vou fazer parte disso", lembra ela. No ano em que o vestibular com regime de cotas foi instaurado, Cláudia se inscreveu e passou em Pedagogia. "Fiquei muito emocionada, sabia que dali para frente minha vida ia mudar", conta. Assim como a maioria do estudantes cotistas, Cláudia fez oficinas para melhorar seu desempenho no curso. Além disso, também recebeu uma bolsa permanência de R$ 190,00 para conseguir manter-se na universidade. "No começo você tem dificuldade em tudo. Para entender a linguagem dos professores, para tirar cópias dos materiais, para comer e para se locomover de casa para universidade. Como estudava de manhã e fazia os reforços à tarde, às vezes, ficava com fome. Quando colocaram um microondas na copa e pude trazer meu almoço, aí sim ficou melhor", relata.
Hoje, Cláudia faz parte de um grupo de iniciação a docência e ministra oficinas de apoio das quais um dia fez parte como aluna. Sua dedicação lhe rende, mensalmente, uma bolsa de R$ 190,00. Você pode se perguntar, como Cláudia consegue se virar com menos de um salário mínimo? É aí que entra o apoio dos amigos e familiares. "Muitas vezes pensei em desistir por causa do dinheiro, das crianças. Mas percebi que não podia deixar meu sonho de lado por causa das dificuldades. Lá em casa, quem banca a maior parte das contas é meu marido, que é vigia. As crianças recebem o bolsa-família para custear os gastos com comida e educação. É claro que é difícil, mas ninguém quer que eu pare, muito pelo contrário, todos dão a maior força. Outro dia meu marido virou para mim e disse: você não está atrasada para a aula não?", recorda Cláudia.
Uma característica que parece comum aos estudantes que fazem parte das minorias que estão na universidade é a solidariedade em relação ao próximo. Assim como hoje Cláudia apóia novos estudantes que vêm às oficinas em busca de reforço, o estudante Wesley Pereira Granjeiro, 24 anos, que ingressou no curso de Artes Plásticas da UnB (Universidade de Brasília) pelo sistema de cotas, também faz parte da assessoria de diversidade e auxilia novos estudantes ao discutir melhorias para os cotistas da UnB. Ele, que prestou o vestibular tradicional por quatro vezes seguidas sem sucesso, depois de entrar pelo programa de cotas, tem como principal tarefa na assessoria difundir este meio de ingresso para alunos da rede pública do Distrito Federal.
"Sem dúvida, entrar na universidade significou uma nova etapa em minha vida. Tive a oportunidade de me aprimorar profissionalmente e fazer parte de um mundo até então desconhecido e restrito para as pessoas que não vem de uma realidade carente. Esse é um dos motivos que me fizeram ingressar no programa 'cotistas nas escolas' promovido pela assessoria de diversidade da UnB, para difundir a jovens carentes que vivem a mesma realidade que eu a chance de ingressar no Ensino Superior", explica.
Estagiário no programa desde 2005, Granjeiro recebe uma bolsa permanência de R$ 180,00. "É pouco, mas para quem não tinha nada, é ótimo. Pude comprar livros e pagar a passagem para a universidade, que são as maiores dificuldades de qualquer estudante sem recursos. Apesar de todos os desafios, não desisto da faculdade por nada. Ainda quero me formar, ser artista plástico e também professor para poder ensinar as pessoas que, com força de vontade, é possível ir muito longe", diz.


O papel das IES na inserção dos negros

Instituições de Ensino Superior apontam sucessos e dificuldades
Publicado em 19/11/2007 - 12:00

Por Lilian Burgardt
Por trás das ações de inserção, há muitos desafios a serem vencidos pelas Instituições de Ensino Superior. Ao levantar a bandeira da inclusão de negros, muitas instituições têm que estruturar programas de apoio, ampliar discussões em sala, fechar convênios com empresas e estabelecer parcerias. Isto porque, ao se falar em inclusão dos negros, é preciso levar em conta duas questões: a primeira é que a maior parte destes alunos veio do ensino público, cuja deficiência se revela cada vez mais gritante. Em seguida, o preconceito, ainda que velado, por parte dos outros alunos não cotistas, também presente no desinteresse das empresas em contratar esta mão-de-obra.
"Historicamente o negro tem menor qualificação do que o branco, mas quando tem a mesma qualificação, ainda é preterido nos processos seletivos. Isso é o que pretendemos mudar, para que, no futuro, pesquisas como essa do Diesse revelem uma sociedade menos desigual", afirma o reitor da Unipalmares (Universidade Zumbi dos Palmares), José Vicente. Com vistas numa maior inserção do negro no mercado de trabalho, a instituição fechou acordos com dez empresas privadas da capital paulista. Em uma dessas empresas é que a estudante de Administração da Unipalmares, Kátia Botelho, 22 anos, foi contratada como estagiária e, posteriormente, efetivada na área administrativa. "Um terço dos estudantes estão empregados e muitos já foram efetivados. Considero que obtivemos sucesso ao proporcionar ensino de qualidade e oportunidade para que estes jovens possam ser incluídos no ambiente profissional," destaca.
Mas as ações não terminam por aí. Segundo Vicente, o papel da instituição também é formar cidadãos conscientes do seu valor e, para promover um resgate de identidade é que são trabalhadas em sala de aula questões como o papel do negro na sociedade e sua inserção no mercado de trabalho, entre outros temas. "A finalidade é discutir e transformar esses alunos em massa crítica para que se sintam mais respeitados e tenham melhor auto-estima", explica. Hoje, 90% dos estudantes da Unipalmares são negros auto-declarados. No entanto, a universidade também possui alunos brancos. Para o reitor, essa é uma forma de trabalhar a equidade na prática.
"Não é uma universidade só para negros. Temos alunos brancos que escolheram vir para a Unipalmares porque ela é uma universidade que, sobretudo, facilita o acesso do estudante carente. Na minha opinião, não há uma segregação, muito pelo contrário, aqui os alunos têm uma formação mais humanista e mais completa. Além de aprender a economia do Brasil, por exemplo, eles aprendem a inserção do negro nessa economia. No fim das contas, ele aprende mais e, na prática, terá mais condições para ser um cidadão mais completo e livre de preconceitos", defende o reitor. É por isso que, além das atividades em sala, o tempo todo, o estudante se depara com debates, workshops e encontros sobre eqüidade. "Nosso propósito é aproximar e não afastar mais", completa Vicente.
Essa preocupação em aproximar os estudantes brancos e negros também é uma realidade na UnB (Universidade de Brasília). Na instituição, há um centro exclusivo de convivência negra em que são bem-vindos não só os alunos que entraram pelo sistema de cotas, mas todo estudante que se interessa em aprender a conviver com eqüidade. Segundo o coordenador da assistência a diversidade e apoio aos cotistas da instituição, Jacques Jesus, o objetivo do centro é fomentar discussões sobre a inserção do negro no Ensino Superior e o que implica essa convivência. "Esse nome, 'centro de convivência negra' foi uma espécie de provocação. No início, muitos pensavam : 'ah, mas é só para negros?' E eu quis essa polêmica para mostrar que não. Queria que as pessoas se interessassem pelo que acontece ali e se predispusessem a participar", destaca.
Na instituição, criar este centro de convivência e promover debates e workshops para consolidar a presença negra na universidade e fazer disso uma transformação tranqüila e gradativa foi e continua sendo o maior desafio. Faltam recursos para promover exposições, projetos, debates, e eventos que possam difundir as atividades do centro e promover maior integração entre os estudantes. "De qualquer forma, considero que as ações aqui na UnB, como o vestibular com cotas e as oficinas de apoio que já existiam para atender os alunos com alguma dificuldade nos estudos, são muito bem-sucedidas. Não podemos reclamar da falta de apoio. O que precisamos é trabalhar para difundir ainda mais essa diversidade como fator positivo e agregador para todos os alunos e para a instituição de maneira geral", afirma.
Este, aliás, é um dos objetivos do programa "Cotistas nas Escolas" coordenado por Jacques Jesus. O trabalho consiste em convidar estudantes cotistas da UnB para ir às escolas municipais dar seu testemunho de ingresso na universidade e falar sobre os projetos de inclusão do negro da instituição. "Queremos mostrar aos futuros universitários que eles podem ter uma chance de ingressar no Ensino Superior e que, ao contrário do que muitos pensam, este é sim um sonho tangível. A presença do cotista na escola reafirma o compromisso social da instituição com a difusão do Ensino Superior e a inclusão social", diz.
Na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) as ações em prol da inclusão social dos cotistas giram em torno do programa Pró-Iniciar. O objetivo do programa é oferecer condições para que os estudantes que ingressaram no Ensino Superior possam acompanhar os colegas por meio de reforço em disciplinas como Matemática, Física e cursos instrumentais de Informática e línguas, como Português e Inglês, além de terem apoio à formação cultural. Com isso, o programa prevê visita a museus, exposições, centros de estudos e referências culturais importâncias da cidade e do Estado do Rio de Janeiro. "Sabemos que a maioria destes estudantes é muito carente e não tem acesso a esses locais que propiciam um complemento à formação cultural do aluno e enriquecem o seu pensar. Na universidade, valorizamos muito isso, por essa razão consideramos fundamental incluir este tipo de programa no Pró-Iniciar", afirma o sub-reitor da UERJ, Ricardo Arruda.
Outra forma de apoiar o estudante é por meio da concessão de bolsas permanência. O objetivo é fornecer recursos para que os jovens carentes consigam concluir seus estudos. "Sabíamos que não adiantaria só facilitar o ingresso destes estudantes, mas que seria preciso oferecer meios para que eles possam estudar", revela. A bolsa permanência da UERJ é de R$ 190,00 para os dois primeiros semestres, mas a FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) também oferece apoio por meio de um acordo que confere bolsas de incentivo à graduação no valor de R$ 2.014,00 para alunos a partir do terceiro semestre.
Para Arruda, a UERJ enfrentou inúmeras dificuldades por ter sido a primeira instituição do país a adotar o sistema de cotas. Mas muito ainda está por vir e por ser feito, uma vez que a idéia da instituição é aprimorar sempre mais o que já é desenvolvido. "De lá para cá, tudo foi um aprendizado. Implementar um sistema de cotas foi um trabalho de êxito, mas que exigiu um profundo comprometimento de todos. É preciso agradecer todos os docentes, funcionários e alunos da instituição por este trabalho de transformação social, cientes de que temos que continuar o trabalho para que os resultados sejam cada vez melhores", conclui.

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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.