domingo, 30 de março de 2008

O BRASIL NÃO É O ÚNICO PAÍS DO CARNAVAL

Retirado do site da Secretária de Comunicação da UNB.

01/ 02/ 2008 - SOCIEDADE
Rodolfo BorgesDa Secretaria de Comunicação da UnB
Roberto Fleury/UnB Agência


O carnaval brasileiro ganha em proporções cada vez maiores com o passar dos anos, mas paga um preço caro pela própria industrialização. De acordo com o professor José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia (DAN) da Universidade de Brasília (UnB), a festa que ganhou fama internacional no Brasil não apenas se desvinculou do seu caráter sagrado, como vem perdendo características e elementos que a definiam há até algum tempo. “Em alguns sentidos, o carnaval de Barranquilha, na Colômbia, entre outros, é mais rico que o brasileiro, pois é esteticamente mais diverso, e preserva o grotesco, que é um elemento fundamental do carnaval”, considera o professor.
“Outro elemento central é a permissão para burlar os poderosos. Além disso, o carnaval também tem um caráter escatológico, de impureza, cheio de excrementos”, destaca. Segundo o antropólogo, a ausência desses elementos no carnaval brasileiro explica-se pela maneira ostensiva como a indústria do entretenimento se apropriou da festa no país. “Para mim, o ponto de ruptura do carnaval brasileiro é a década de 1970, quando surgem as telenovelas da Rede Globo. Na época, descobriu-se a possibilidade de um novo tipo de lucro, que extrapolava o lucro da festa”, esclarece o professor.
Por serem transmitidas pela televisão, as festas do Rio de Janeiro e de Salvador, principalmente, precisam seguir uma ordem que conflita com o próprio significado da data. “O carnaval brasileiro está ficando controlado, ele não permite mais muitos exageros”, lamenta. Carvalho garante, contudo, que a maioria das festas que acontecem durante esse período do ano no Brasil preserva seu caráter comunitário. Na entrevista abaixo, o professor ainda comenta a proposta de se estabelecer uma data fixa para o carnaval, e afirma que não se pode culpar a festa por adiar o início do ano político no Brasil. “Para afirmar algo do tipo, é preciso considerar que a administração pública funciona de março a dezembro”, lembra.
Roberto Fleury/UnB Agência

“Há uma certa monotonia nos carnavais do Rio e de Salvador. Os festejos de outros países têm muita invenção, muita criatividade e muita ousadia.”UnB AGÊNCIA – O senhor considera que o carnaval perdeu a essência ao longo do tempo?
JOSÉ JORGE DE CARVALHO – O carnaval mudou de sentido. Ele era muito mais ligado a um ciclo sagrado, fazia parte das saturnálias romanas, em que as pessoas se livravam um pouco do peso dos deuses. Durante o carnaval, era possível sacudir o lado cruel dos deuses e brincar com tudo, fazer palhaçadas com as próprias divindades. O carnaval de que nós falamos hoje é cristão. Quando o cristianismo surge, ele recupera aquele período das festas romanas e o inclui dentro do calendário sagrado. É um momento de descontração, de inversão do mundo. A diferença é que, antigamente, depois da festa, todo mundo voltava para a contrição, para uma devoção própria do calendário litúrgico dos santos. Na Idade Média, ocorria dessa forma. O carnaval está vazio de sentido, porque a parte sagrada é cada vez menos presente. Ele virou mais uma festa do que parte do calendário católico – tanto que a maioria das pessoas não vai à missa na quarta-feira de cinzas.

UnB AGÊNCIA – Com a liberdade – até mesmo sexual – que existe atualmente, faz sentido a manutenção de um período como o carnaval, tido como uma festa que permite a liberação de todo tipo de comportamento?
CARVALHO – Até certo ponto, a data perde nesse sentido. Mas continua existindo a diferença. De qualquer forma, fora do carnaval, a sexualidade é mais contida. A repressão sexual continua sendo alta. Existe uma ilusão de que se pode tudo, mas é o que o Marcuse chamava de “dessublimação repressiva”: você expõe mais o corpo, mas surgem outros códigos para escondê-lo. Pode haver outras festas, mas o cotidiano é mais reprimido. Hoje, talvez, haja uma descontração sexual maior em comparação com o século 19. Aos nossos olhos, o entrudo (termo que designa o carnaval daquela época) era pouco libertino quando comparado ao cotidiano, mas, para as pessoas da época, era muito liberal. Sempre existiu uma diferença de intensidade entre o carnaval e o resto do ano.

UnB AGÊNCIA – O carnaval atrapalha o país por postergar o início do ano para depois de fevereiro?
CARVALHO – No caso da política, é possível considerar que sim. Mas é difícil dizer que atrapalha. Para afirmar algo do tipo, é preciso considerar que a administração pública funciona de março a dezembro. E, durante o ano passado, por exemplo, ela não funcionou por causa das crises que envolveram o mensalão e o senador Renan Calheiros. Não é por causa do carnaval que as coisas não acontecem.

UnB AGÊNCIA – Por que a base sagrada do carnaval se enfraqueceu?
CARVALHO – Nós estamos em um momento em que as sociedades tornaram-se totalmente dessacralizadas. Antigamente, para todas as sociedades do mundo, o tempo era sagrado, e, dentro dele, havia momentos de devoção e de inversão (festas carnavalescas, dionisíacas, entre outras). Só muito recentemente, com o surgimento das sociedades industriais do século 19, o calendário cristão começou a cair no mundo ocidental, e o capital tomou o seu lugar. As leis que o Estado formula estão relacionadas com a produção (isso é bem ilustrado pela criação do sábado e do domingo e pelas horas diárias de trabalho). O capital foi regendo a produção e passou a atuar também em relação ao lazer, aos momentos em que as pessoas não estão trabalhando. O carnaval do século 20 está imerso nessa lógica industrial.
Roberto Fleury/UnB Agência

“Considerando que a festa já está desconectada de sua base sagrada, marcar um dia específico não mudaria muito”UnB AGÊNCIA – Em que essa situação alterou a festa?
CARVALHO – O carnaval era um espetáculo que a comunidade controlava. Agora, as indústrias do turismo e do entretenimento dão a pauta de como vai ser a festa, pois ela não existe mais só para entreter a comunidade que a prepara, mas quem vem de fora também. O século 20 foi marcado pelo voyeurismo do carnaval. O espectador consume o gozo do outro – daquele que está na festa – através do olhar. O carnaval vai se encaixando numa lógica laica e, ao invés de se conservar como o momento de descanso que representava, vira uma grande indústria, uma grande produção. É o contrário do seu sentido sagrado, de acordo com o qual ele seria o momento da não-produção, do relaxamento.

UnB AGÊNCIA – Por que o carnaval tomou uma proporção tão grande no Brasil?
CARVALHO – Foi exatamente por causa da indústria do entretenimento. No Brasil, essa indústria teve características muito particulares ao longo do século 20. Não é apenas aqui que o carnaval tem uma importância grande. Trinidad e Tobago tem um carnaval tão ou mais espetacular do que o nosso. O Haiti possui uma festa extraordinária, e, na Colômbia, ela é riquíssima. O mesmo pode ser dito de Nova Orleans (Estados Unidos), Nice (França) e Veneza (Itália). O Brasil assumiu esse lugar de destaque em relação ao resto do mundo por causa da concentração dos meios de comunicação no país. Para mim, o ponto de ruptura do carnaval brasileiro é a década de 1970, quando surgem as telenovelas da Rede Globo. Na época, descobriu-se a possibilidade de um novo tipo de lucro, que extrapolava o lucro da festa. Quer dizer, a imagem de atores, cantores e de qualquer pessoa que tenha valor midiático passou a ser vendida como mercadoria. Isso potencializou o espetáculo. Como a população já foi monopolizada em grande medida pelos meios de comunicação e pela publicidade em torno dessas figuras, uniu-se tudo isso, de forma astuta, à festa popular. Hoje, a grande telenovela das televisões é o carnaval.

UnB AGÊNCIA – Quer dizer que o carnaval brasileiro não é melhor do que o de outros países?

CARVALHO – Quanto à diversidade de formas dos blocos, ele realmente não é. Os carnavais carioca e baiano, inclusive, estão ficando monótonos sob esse ponto de vista. Nesse sentido, o carnaval de Barranquilla, na Colômbia, é mais rico do que o brasileiro, pois é esteticamente mais diverso, e preserva o grotesco, que é um componente fundamental do carnaval. Outro elemento central é a permissão para burlar os poderosos. Além disso, o carnaval tem um caráter escatológico, de impureza, cheio de excrementos. A festa brasileira está ficando controlada, não permite mais muitos exageros. Em Barranquilha, o carnaval é muito mais variado do ponto de vista de invenção popular do que o carioca. O mesmo acontece no Haiti, e até no Uruguai, que tem mais variedade musical. Há uma certa monotonia nas folias do Rio e de Salvador. Os festejos de outros países são mais frugais, mas têm muita invenção, muita criatividade e muita ousadia. O nosso está ficando menos ousado, porque vai passar pela televisão. Depois do carnaval, os personagens que participaram dele vão fazer publicidade de cerveja, xampu, roupa, sapato, carro. Então, eles não podem aparecer com o seu lado grotesco. Isto é, aqui, os travestis participam do carnaval, mas só se forem extremamente bonitos, dentro de um padrão eurocêntrico. Um desfile de travestis em Trinidad e Tobago é muito mais escrachado, eles são mais livres para se apresentar.

UnB AGÊNCIA – Então o Brasil não é país do carnaval?
CARVALHO – O Brasil é o país do carnaval da Globo e da Bandeirantes. É o país do carnaval no sentido da sociedade espetáculo. Mas Trinidad e Tobago também é o país do carnaval, assim como o Haiti, a Colômbia e o Uruguai. O Brasil não é o único país do carnaval.

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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.