quarta-feira, 30 de abril de 2008

APÓS CINCO ANOS DE COTAS, NOVAS CORES NO ENSINO SUPERIOR?

Retirado do site da Folha Dirigida. Matéria um pouco antiga, mas vale a pena o registro.

Após cinco anos de cotas, novas cores no ensino superior? 22/01/2008
Bruno Vaz


Há cinco anos, quando a primeira instituição de ensino superior brasileira, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), adotou um sistema pioneiro, que reservava parte das vagas em seu vestibular para alunos de origem negra, denominados afrodescendentes, a polêmica tomou conta da comunidade acadêmica. O debate em torno da legitimidade da medida, que ficou conhecida como política das cotas, trouxe à tona defesas acaloradas dos pontos de vista favoráveis e contrários ao beneficiamento de um determinado grupo de estudantes.
Ações pipocaram na Justiça contra o sistema. Alunos que passaram no vestibular mas não puderam ingressar na instituição, devido à política, reclamaram contra uma suposta inconstitucionalidade da medida. Mas a mobilização da comunidade negra e a aceitação da sociedade em geral fizeram com que as cotas, atualmente, sejam aplicadas em 54 instituições de ensino superior, sejam elas estaduais ou federais, em todo o país.
Apesar da proliferação do sistema, duas constatações se tornaram quase unânimes entre educadores e alunos: o sistema ainda precisa de aperfeiçoamento e a inclusão de estudantes negros e carentes no ensino superior ainda vai demorar muito tempo para ser atingida plenamente.
Aluna cotista de Direito da Uerj, Aline Andrade, que entrou na instituição no ano em que foi instituído o sistema e está se formando em 2008, elogia a iniciativa, mas lembra que muita coisa precisa ser feita para estimular a permanência do aluno carente na universidade. "Eu acho que o sistema é positivo, mas precisa de mudanças porque os estudantes têm problemas financeiros. A universidade deveria facilitar a nossa permanência oferecendo bandejão e alojamento. Também acho que não deve acontecer o equívoco de permitir que filhos de policiais mortos em confrontos, por exemplo, sejam beneficiados pelas cotas. Esse não é um recorte válido", explica a universitária.

Cotas para filhos de policiais e bombeiros

Como ressaltou Aline, o sistema da Uerj, implantado através do decreto 30.766, de 04/03/2002, mudou através dos tempos, permitindo, a princípio, que 20% das vagas, das 45% antes destinadas exclusivamente para alunos negros comprovadamente carentes, fossem ocupadas por estudantes que cursaram o ensino médio na rede pública, também com comprovação de carência. Em 2007, o governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, determinou que 5% deste total fosse preenchido por pessoas com deficiência ou nascidas no Brasil pertencentes a povos indígenas, além de filhos de policiais civis e militares, bombeiros, inspetores de segurança e de administração penitenciária mortos em serviço ou incapacitados permanentemente.
Sobre esta questão, o novo reitor da Uerj, Ricardo Vieiralves, já anunciou que pretende discutir o assunto com o Poder Executivo. "A universidade não pode fazer uma idéia de sociedade estratificada por segmento corporativo. Mas o sistema visa reduzir as desigualdades sociais e nós vamos aproveitá-lo da melhor forma possível. É um processo adotado também nos Estados Unidos e que melhorou o país, criou uma classe média negra americana, modificando o perfil da população. Mas nós faremos com que ele seja bem executado", explica o dirigente.
Segundo ele, as medidas de apoio ao aluno cotista para sua permanência na instituição estarão em curso brevemente. "Este ano a instituição ganhará um bandejão, com preços variados e subsidiados para os cotistas. Além disso, pretendemos criar outra estrutura de apoio, além da bolsa-permanência, até o fim do primeiro semestre, como a aquisição de material bibliográfico, alimentação e transporte. É claro que precisamos acompanhar melhor o sistema, ver o tempo necessário para esta medida de força. Quando estas desigualdades forem sanadas ou minimizadas, o sistema não terá mais sentido."
Já as desigualdades entre negros e brancos, com relação ao acesso, permanecem latentes. Segundo dados estatísticos apurados pelo professor de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcelo Paixão, a taxa de escolaridade de pessoas brancas entre 18 e 24 anos, faixa etária média do universitário, é de 19,5%, contra 6,3% dos negros com a mesma idade. Ainda segundo o pesquisador, se o ritmo atual for mantido, somente daqui a 17 anos os níveis de escolarização de negros e brancos serão equiparados.
Apesar das distorções, o desempenho dos alunos cotistas não fica a dever em relação aos estudantes que ingressam no ensino superior sem precisar do sistema de cotas. De acordo com levantamentos realizados em universidades que adotam a política de cotas, como a própria Uerj ou a Universidade Federal da Bahia (Ufba), as notas obtidas pelos universitários oriundos do sistema de cotas são semelhantes ou até superiores às de outros alunos. "Uma grande preocupação da sociedade com as cotas era a perda de mérito acadêmico. Os números demonstram que a diferença no desempenho entre os dois grupos não chega a 10%", explica o reitor da Ufba, Naomar de Almeida Filho.
Parado no Congresso Nacional desde 1999, o projeto de lei 73/99, da deputada federal Nice Lobão (DEM-MA), decreta que as instituições públicas federais de educação superior reservem metade de suas vagas para estudantes que cursem o ensino médio na rede pública. Como os parlamentares ainda não se decidiram pela aprovação da proposta, que conta com o apoio do governo federal, algumas instituições se organizaram de maneira específica, como é o caso da Universidade Federal Fluminense (UFF), que instituiu um sistema de bônus para alguns estudantes da rede pública.
"Pela nossa proposta, oriundos de escolas federais não têm direito ao benefício. O estudante que cursou o ensino médio em escola municipal ou estadual tem um acréscimo de 10% na nota final do vestibular. Desta forma, o aluno entra pelos próprios méritos, porque precisa passar na 1ª fase e ainda se classificar em até oito vezes o número de vagas oferecidas pelo curso pretendido", explica Nelliton Ventura - Coordenador da Coordenadoria de Seleção da instituição (Coseac).
Na maior universidade federal do país, a UFRJ, a reitoria já sinalizou com a possibilidade de reservar um determinado número de vagas para alunos carentes, mas a proposta foi rejeitada pelos conselheiros universitários. "Articulei com a Secretaria Estadual de Educação um projeto de avaliação seriada dos alunos do ensino médio, mas a discussão ainda está nos conselhos da universidade", explica o reitor da instituição, Aloísio Teixeira.
Recentemente, durante o seminário "As ações afirmativas e o desafio da democratização do acesso e da permanência no ensino superior", produzido pelo projeto Conexões dos Saberes, a pró-reitora de Extensão, Laura Tavares, resumiu a ideologia dos dirigentes da universidade. "O vestibular ainda é visto pela equipe da UFRJ, particularmente pela reitoria, como muito restritivo, permitindo o acesso a apenas uma parte da elite brasileira. Nós temos consciência do momento histórico e da urgência de resolver esta questão. Há uma geração de jovens brasileiros que não pode esperar mais pelo exercício do direito de acessar o ensino superior, sobretudo o público."
Como bem reconhece a dirigente, cinco anos após o começo da política afirmativa, o sistema, apesar de toda a discussão a seu respeito e de não ser uma unanimidade entre a comunidade acadêmica, parece ter vindo mesmo para ficar.
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As cotas alteraram o perfil dos alunos da Uerj?

"É singular que em uma universidade como a Uerj, que deve promover a inclusão através do mérito, alunos ingressem em seu corpo discente sem terem condições para isso, ou seja, na frente de estudantes que tiraram notas melhores no vestibular. Como uma pessoa pode tirar notas suficientes para entra no ensino superior e, por uma legislação específica, acabar ficando de fora e tendo que competir novamente no ano seguinte? Isso, na minha opinião, se constitui em racismo. Porque você valoriza um ou outro aluno, em detrimento do seu desempenho no vestibular, por causa da sua raça. Na realidade, desde que o sistema de cotas foi implantado na Uerj, eu tenho sentido uma mudança de perfil nos alunos da instituição para pior. E não acredito nem que isso seja conseqüência apenas do sistema de cotas, mas do próprio colapso do sistema de ensino básico no país. Para que isso se resolva, só existe uma saída, e ela é investir pesadamente na melhoria do ensino fundamental, principalmente no público. Eu acredito que toda a comunidade acadêmica saiba disso, e esta deveria ser a prioridade do Poder Público."
Ubiratan Iorio, professor da Faculdade de Direito da Uerj

"Eu posso falar em nome da faculdade de Pedagogia e acredito que na área das Ciências Humanas, o perfil deva ser o mesmo. Na minha opinião, desde que o sistema de cotas para minorias foi implantado na Uerj eu não verifiquei diferença nenhuma de perfil dos estudantes que ingressaram na instituição. Para ser sincera, em sala de aula, nós, professores, nem sabemos quem entrou pelo sistema de cotas ou não, a não ser que o próprio aluno se identifique para nós. O fato de o universitário ser rico, pobre, negro ou branco não influencia em nada na força de vontade ou na inteligência do estudante. Em outras áreas, mais notadamente na das Ciências Exatas, onde o perfil dos alunos que entravam na instituição era de uma classe um pouco mais alta que o das Ciências Humanas, a diferença após a implantação do sistema de cotas pode ter sido maior. Mas eu, que leciono na Uerj há 30 anos e meio, tenho verificado diferença apenas no nível acadêmico dos alunos que ingressam na instituição, sejam cotistas ou não. E isso se dá não pela política de reserva de vagas, mas pelo enfraquecimento dos ensinos básico e médio no país."
Bertha do Vale, professora da Faculdade de Educação da Uerj

"O sistema de cotas é extremamente positivo, apesar das críticas de que a entrada de alunos negros e carentes iria reduzir o padrão acadêmico da instituição. Na minha opinião, estes alunos, que entram pelo sistema, se dedicam mais e têm conseguido um desempenho muito bom em sua trajetória acadêmica, que não fica nada a dever aos outros alunos, apesar de não termos um indicador completo deste desempenho. A partir de março, quando eu assumir a direção da Faculdade de Educação, pretendo fazer um trabalho de acompanhamento destes estudantes, exatamente para verificar esta questão. Mas, para quem ainda tem algum tipo de preconceito com relação à entrada destes alunos na instituição, eu lembro que a prova de vestibular que eles fazem é exatamente igual ao exame realizado por todos os outros alunos. O que existe é uma medida compensatória a uma questão histórica do país, que é a exclusão da população negra. Este sistema de cotas só vem corroborar o princípio democrático que vem sendo construído na Uerj desde a década de 80."
Lia Faria, professora da Faculdade de Educação da Uerj

"Na minha opinião, o perfil dos alunos ficou muito mais diversificado, plural, com a entrada dos alunos cotistas, e pelo menos na Faculdade de Pedagogia, você não consegue identificar quem entrou pelo sistema e quem não entrou, ou seja, o desempenho dos estudantes é muito parecido. Os próprios alunos que entram na universidade através do sistema, porém, têm se aperfeiçoado, têm se preparado melhor para entrar na instituição. Eu acredito que, atualmente, estes estudantes estão valorizando muito a o ingresso no ensino superior. De qualquer maneira, apesar de considerar o sistema positivo, é necessário que se discutam os aspectos pedagógicos, assistenciais, da política de cotas. Seria muito interessante fazer uma pesquisa para ouvir alunos, representantes da instituição e a própria sociedade e fazer um raio-x destes cinco anos de cotas. Uma coisa muito importante e para a qual a universidade precisa se estruturar, é a manutenção do aluno cotista. Muitas vezes eles não têm condições materiais de se manter no ensino superior e este é um fato que deve ser levado em conta."
Miriam Paúra, professora da Faculdade de Educação da Uerj

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"Os negros são a população mais excluída da nossa sociedade"

"Parto da premissa de que vivemos em um país onde ser branco pobre não é o mesmo que ser negro pobre. Neste aspecto, as cotas étnicas vêm favorecer os mais necessitados dentre os necessitados. Elas são, portanto, um instrumento autêntico que possibilita uma mudança estrutural na sociedade, contribuindo para tornar real uma situação que por si seria impossível - o acesso ao ensino superior. Não basta defendermos o pensamento de que todos os cidadãos são iguais perante a lei, se os mesmos conviverem em situação desigual. Os negros são, indiscutivelmente, a população mais desfavorecida, marginalizada e excluída da sociedade. As cotas significam, portanto, um mecanismo que corrige tanto quanto possível uma desigualdade social que atinge em maior dimensão a população negra brasileira. A Educafro é a favor das cotas sociais, a partir do recorte étnico e sócio-econômico (renda), porque reconhece nesse instrumento uma possibilidade concreta de transformação social, por meio do acesso ao ensino superior, e que sem o qual não haveria possibilidade. Os sistemas de bonificação precisam ter eficácia quanto à meta de inclusão e ao público beneficiário para atingirem realmente os mais necessitados. Estamos questionando na Justiça, por exemplo, as falhas do programa Inclusp, da Universidade de São Paulo (USP). Já está provado que os cotistas têm melhor desempenho acadêmico em seus cursos. Em 2008, a Educafro acredita que o Congresso Nacional irá aprovar o Projeto de Lei 73, que estabelece cotas em todas as universidades federais. Acreditamos, contudo, que toda ajuda é sempre bem-vinda, principalmente para aqueles(as) que, mesmo tendo conseguido ingressar na universidade, não conseguem permanecer dentro dela, por não possuírem as condições mínimas que as permite chegar até lá, por exemplo. Além de garantir o acesso ao ensino superior, no caso do jovem negro, é preciso garantir-lhe a alimentação, o transporte e outras necessidades básicas que lhe dêem as condições mínimas para estudar."
Frei Valnei Brunetto, diretor da Educação e Cidadania de Afro-descendentes e carentes (Educafro)

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"As cotas raciais vieram para refazer o nosso sistema de classificação racial"

"O Brasil, ao longo do século 20, lutou para extinguir a marca que o racismo do século 19 imprimiu sobre o nosso povo. Foi o modernismo que, com todas as suas imperfeições, lutou pela instituição de um outro paradigma no qual a ‘raça’ não marcava os indivíduos. O que salta aos olhos do observador mais atento é que as cotas raciais vieram para refazer o nosso sistema de classificação racial. Como instituir cotas raciais sem antes classificar aqueles que têm direito e os que não têm? Todos os países que implantaram essa política, ou já possuíam um sistema rígido de classificação racial ou tiveram que criá-lo. Esse dilema está agora implantado no país porque, em recente pesquisa em escolas da rede pública do estado do Rio de Janeiro, o dilema apareceu de forma muito nítida. Aplicamos um questionário para estudantes do primeiro ano do ensino médio. Entre as perguntas, havia uma que pedia aos estudantes que se autoclassificassem em uma das categorias do Censo Demográfico. Qual é sua cor/raça: branca, preta, parda, amarela ou indígena. Essa pergunta suscitou mais dúvidas e mais reação de todo o questionário. A maioria dos estudantes não queria identificar-se em nenhuma das categorias e mostrou-se favorável a cotas para estudantes de escolas públicas. No geral, os estudantes estão mais de acordo com as cotas para pobres e para estudantes de escolas públicas, indicando que essas modalidades de reservas de vagas estão mais próximas de suas concepções de justiça distributiva. No entanto, 50% dos alunos concordaram com as cotas para negros, apesar de muitos deles terem manifestado seu desconforto diante da pergunta que exigia a autoidentificação em uma das categorias raciais segundo o IBGE. O que essas políticas estão propondo é o fim dessa possibilidade e o início de uma marcação muito rígida de indivíduos, que não poderão mais dizer que, tão somente, pertencem à raça humana. Não há ‘raças’ humanas, mas raça humana. Sendo assim, um ‘tribunal’ só faz colocar a nu o que está por trás das cotas raciais, ou seja, o ideário racial que instaurou no mundo a separação e a marca que cria sociedades divididas."
Yvonne Maggie, doutora em Antropologia Social, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ

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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.