Recebido por email e divulgando.
Artigo pequeno, mas com uma análise bem interessante e refinada sobre o contexto da sociedade baiana. Para baixar em formato PDF clique aqui.
Por Felipe da Silva Freitas[1]
No último dia 15 de julho, a UESB – Universidade Estadual do Sudoeste Baiano – completou um importante ciclo de mudanças no ensino superior desse Estado. Com uma decisão de seu Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão, a UESB uniu-se à UFBA, UFRB, UEFS, UESC e UNEB, completando o ciclo da adoção de reserva de vagas nas universidades públicas da Bahia e dando um importante passo na conquista da igualdade racial.
Enquanto estado de grande concentração negra do país, conhecido pela sua grande diversidade cultural e marcado, tristemente, pela desigualdade e pelo coronelismo, a Bahia é um dos redutos de uma forma de construção social amparada entre a arquitetura punitiva de práticas policialescas retrógradas e a desfaçatez de um discurso de pseudo-neutralidade , sob o mito da democracia racial, que, na Bahia, chama-se de Terra de Todos os Santos.
Trata-se de um projeto complexo e sofisticado de dominação que, na conformação da política baiana, encontrou amparo nos latifúndios do interior ou nos apartamentos de luxo da capital e que, prescindindo de formas legais expressamente racistas, soube claramente dizer quem é e quem não é negro por aqui, bem como dizer a cada grupo racial qual o seu lugar e com quem estavam falando. A polícia baiana, por exemplo, sempre se prestou a dizer bem claramente de quem são esses papéis.
O racismo fundou-se enquanto elemento estruturante da política e da forma de organização social em nosso Estado. Seja pela vigilância e pelo controle dos corpos negros, pela permanente subalternizaçã o de seus discursos e representações, pela inferiorização das pautas relacionadas à temática racial, ou seja, pela omissão do Estado no campo das políticas de promoção da igualdade temos que o racismo preside as nossas relações sociais e sacraliza um modelo perverso de assimetrias e iniqüidades.
No campo do ensino superior, essa realidade assume contornos estarrecedores. Segundo pesquisa realizada pela UFBA, em 2000, apenas 42,6% de seus estudantes eram auto-declarados pretos e pardos (negros) quando o percentual geral de negras e negros em todo o Estado é de 73,1%, ou seja, havia um déficit absoluto de 30,5% de negros.
Se observados em cursos de alto prestígio social como medicina, direito e odontologia, esse déficit poderia chegar a 100%, revelando um nível de desigualdade que não consegue ser explicado sem a consideração do racismo enquanto um elemento estruturador do acesso aos níveis superiores de ensino.
As políticas de cotas, que buscam reduzir os danos dessa situação, sem dúvida, acabam por incomodar àqueles que, no exercício histórico de seu poder de mando, confundiram privilégios com direitos, reagindo a tudo que reduza, ainda que de maneira parcial e precária, os insuportáveis índices de desigualdades a que está submetida a maioria da população.
O discurso da meritocracia e da igualdade formal, aliados à tese da democracia racial e de todo o aparato teórico dos seguidores de Gilberto Freire, vão, progressivamente, repetindo a mesma cantilena monocórdica de que todos somos mestiços e de que vivemos num amplo e variado “mosaico de cores a raças”.
Ora, se é verdade que o Brasil encontra altos níveis de miscigenação em sua composição racial e que sem dúvida o conceito de raça está superado do ponto de vista biológico, é verdade também que o racismo (amparado na raça) funciona como elemento estruturante das relações de poder e prestígio nesse país e que, ao fim, “o racismo é uma doutrina, uma ideologia ou um sistema sobre o qual se apóia um segmento populacional considerado superior, por causa de características fenotípicas ou culturais, a fim de conduzir e subjugar o outro, tido como inferior.”[2]
Enfim, entre as várias possibilidades de inclusão e pertencimento sócio-racial existentes no Brasil, fico com as idéias do cineasta e militante negro Joel Zito:
Sou brasileiro, com ascendência afro-índígena- portuguesa. Mas neste momento histórico só me interessa afirmar o que fui pressionado a negar. O país ainda precisa de um choque de negritude e de indigeneidade. Para chegar a ser pós-racial precisa antes ser multirracial. Precisamos reconhecer que nossa nação é um mosaico, onde vivem filhos de africanos, de japoneses, de libaneses e de europeus, além dos indígenas. Somente assim poderemos, no futuro, realizar o mito que tanto prezamos, e vir a ser um exemplo de democracia racial. Neste momento sou orgulhosamente o meu avô e bisavô, eu sou neguinho.
Com as políticas de ações afirmativas, opera-se lentamente uma significativa inversão no campo das Universidades. Pela primeira vez em suas histórias, as Universidades baianas poderão discutir, de maneira séria e responsável, a questão da igualdade como fundamento real (e não meramente retórico) de todo o processo de construção de saberes e fazeres sociais.
Com a possibilidade de grupos oriundos de diferentes estratos sociais ocupando o espaço da Universidade (ainda que em número reduzido) abre-se a possibilidade para luta por conquistas maiores, oxigenando o “fazer universitário” , e promovendo inclusão no rumo da igualdade sócio-racial em toda sociedade.
Com as cotas, não está alimentada a ilusão de que o problema terminou, mas, apenas, sabe-se que estão asseguradas as condições mínimas para se continuar na disputa, garantindo progressivamente o lastro para a consolidação dos direitos da maioria da sociedade brasileira. Sem dúvida, novos desafios nascerão com a entrada desses estudantes e muitos serão aqueles que, atingidos em seus privilégios seculares, se colocarão às portas do Judiciário em busca da derrubada do sistema de cotas em todas as Universidades em que ele já foi conquistado.
Não cabe mais a interpretação limitada e restritiva do que seja a igualdade no ordenamento jurídico brasileiro e, muito menos, agarrar-se à norma como último bastão no combate a emancipação negra nesse país. A partir de vários acúmulos teóricos e políticos, o movimento conseguiu destruir o conceito freireano de democracia racial e de igualdade meramente formal. Ainda que apareçam pedaços desse cadáver insepulto no caminho da nossa história, não há como recuar no reconhecimento de direitos para a maioria excluída, nem fazer reviver o conceito estritamente ortodoxo de igualdade e isonomia.
Ainda assim, é óbvio que estamos diante de uma grande empreitada. A construção de políticas efetivas de permanência para esses estudantes está na ordem do dia de todo o movimento negro e, mais perto do que possa parecer, essa será a grande questão da política e da mídia em todo o Estado.
Sabemos que sem as políticas que garantam a permanência, as políticas de acesso não prosperam e nem tomam o sentido real para os quais ela foi pensada. Os Governos e as Administrações das Universidades precisam acordar para a urgência de articular tudo isso que tem sido feito no campo da reserva de vagas e, rapidamente, garantir que a Bahia promova ações visíveis com políticas exeqüíveis, com projeto, prazo e recursos.
Estamos falando de uma política interinstitucional, efetiva, séria e discutida amplamente com as lideranças do movimento negro, pois, mais do que nunca, estamos comprometidos com essa questão e necessitamos ampliar os fóruns de discussão e deliberação no Estado da Bahia.
Longos passos já foram dados e agora é preciso continuar a jogar com as cartas todas na mesa. A superação das desigualdades raciais passa pela superação da sub-representaçã o negra nos bancos universitários e isso está sendo progressivamente revertido a partir da pressão negra nos Conselhos das Universidades.
Agora, é necessário que o movimento saiba avançar na pauta e construir as novas lutas que se apresentam. No mais, torcemos para que o STF posicione-se logo com relação às cotas e que, no Governo da Bahia, sinais aconteçam apontando para uma ação mais efetiva por uma política de promoção da igualdade no ensino superior articulando todas as Universidades públicas do Estado, pois, estamos de olho e não vamos parar. É ancestralidade- identidade e resistência!
[1] Felipe da Silva Freitas é militante da Pastoral da Juventude e representante do Núcleo de Estudantes Negros e Negros da UEFS na Comissão Responsável por avaliar a política de permanência dos estudantes cotistas na Instituição – fsfreitas_13@yahoo.com.br.
[2] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 1ª Ed., São Paulo: Contraponto, 2008, p. 16.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.