Mais um texto que tenta analisar e explicar como se dá as categorias de identidade negra nos EUA. Interessante por nos estimular a pensar a realidade brasileira.
Retirado do site Vidas Alternativas, originalmene postado no site pouguês do Jornal Público.
28.08.2008, Maria José Oliveira
A comunidade negra dos EUA acusou Barack Obama de não ser “suficientemente negro”. Uma funcionária de uma junta de freguesia de Lisboa acusou o presidente de racismo por ele lhe ter chamado preta. Spike Lee zangou-se com Tarantino por causa da palavra preto. Negro e preto têm o mesmo poder discriminatório? Ou um dos termos é mais “aceitável” do que o outro?
É um momento simbólico num dia simbólico. Hoje, 45 anos depois de Martin Luther King ter tido um sonho - um dia, todos os homens serão irmãos -, Barack Obama aceita oficialmente a nomeação como candidato à presidência dos EUA pelo Partido Democrata.
Apesar de a campanha não ter resvalado para a questão racial, ela existe e está presente sobretudo em algumas sondagens que incluem a cor da pele como factor para a intenção de voto. A nomeação de Obama não significa necessariamente que estamos prestes a entrar numa era pós-racial. É ainda muito cedo para o afirmar. Não apenas porque a eleição não está garantida, mas também porque as consequências de uma eventual vitória são ainda uma incógnita.
Embora alguns analistas considerem que este pode ser o momento certo para debater os problemas raciais, intervindo através da oratória para mudanças de comportamentos e entendimentos, a verdade é que as tentativas de Obama para produzir um discurso pós-racial confrontaram-se com as resistências da comunidade negra, que chegou a atacá-lo por não ser “suficientemente negro”.
Há dez anos, os realizadores norte-americanos Spike Lee e Quentin Tarantino envolveram-se numa polémica em torno do uso do termo nigger (preto, em inglês; black é que equivale a negro). Em entrevista à revista Variety, Lee não poupou críticas ao “excesso” da utilização da chamada n-word no filme Jackie Brown (1997) - o cineasta foi tão minucioso que disse ter contado 38 vezes o uso de nigger ou nigga. “Não sou contra o uso do termo”, afirmou, “e também o utilizo nos meus filmes, mas o Quentin parece estar apaixonado pela palavra. O que é que ele quer? Tornar-se num negro honorário? Ele tem de saber que todos os afro-americanos não consideram a palavra trendy.” Tarantino não replicou. Quem primeiro saiu em sua defesa foi Samuel L. Jackson, actor de Jackie Brown, durante o Festival de Cinema de Berlim. “Os artistas negros julgam que são os únicos que podem usar esta expressão. Bem, isso é um disparate.” E continuou: “Jackie Brown é um bom filme, e o Spike não fez qualquer filme bom nos últimos anos”.
A resposta de Tarantino surgiu mais tarde, numa entrevista ao Boston Phoenix: “A palavra nigger é provavelmente a mais volátil na língua inglesa. Que palavra quer ter este poder? Acho que deve ser ‘despoderizada’. Mas essa não é a minha função. Não tenho qualquer agenda política no meu trabalho. Crio personagens. O uso de nigger é uma verdade para a personagem de Samuel L. Jackson. Impedi-lo de a dizer seria uma mentira”.
A controvérsia entre os dois realizadores amainou com esta troca de argumentos. Mas, alguns anos depois, em 2003, Spike Lee voltou a abordar o assunto. Ao jornal britânico The Guardian afirmou não sentir qualquer indício de arrependimento pelas suas afirmações e insistiu que o uso da palavra tinha sido excessivo. Aproveitou para contar um episódio da altura em que a polémica fervilhava: “O Harvey Weinstein [co-fundador da Miramax, produtora de Jackie Brown] telefonou-me e pediu-me para parar com aqueles ataques. Eu respondi-lhe: ‘Harvey, produzirias um filme em que se utilizasse em muitos momentos a palavra judeu?’. Ele tossiu e respondeu: ‘Não’. Então, disse-lhe: ‘Ah, não se pode dizer judeu, mas nigger já pode’”.
Autobiografia polémica
Em finais de 90, a contenda entre Lee e Tarantino alargou-se a outras áreas, estendendo-se para fora do cinema. E fez correr muita tinta sobre o tema, com diversos analistas a explorarem as mais variadas dimensões da palavra nigger, do seu emprego e conotação.
Num artigo publicado nessa altura no semanário norte-americano Metroactive, J. Allen-Taylor lembrava que a n-word era usada, desde há largas décadas, em números de stand-up comedy feitos por comediantes e actores negros. Há 30 anos, Richard Pryor já empregava a palavra no palco; e Dick Gregory, comediante, escritor e activista dos Direitos Humanos, desafiou os paladinos do “politicamente correcto” com o título da sua autobiografia, Nigger: an autobiography, publicada em 1964. Na dedicatória, escreveu: “Querida mãe, onde quer que estejas, se alguma vez ouvires a palavra preto outra vez, lembra-te que estão a fazer publicidade ao meu livro”.
Décadas mais tarde, o actor e comediante Chris Rock apresentou-se como o herdeiro legítimo de Pryor e Gregory. No espectáculo de stand-up que realizou para a HBO, Bring the Pain, em 1997, Rock estreou o famoso número (que voltaria a repetir nos anos seguintes) black people versus niggers, no qual declarava “guerra civil” aos segundos. Ganhou dois Emmys com Bring the Pain.
A partir da utilização de duas fórmulas linguísticas - uma com cariz pejorativo (niggers), outra politicamente correcta (black people) -, Chris Rock procurou concentrar nos niggers todos os estereótipos negativos habitualmente associados à população negra. “Tudo aquilo que os brancos não gostam nos negros, os negros também não gostam nos negros. É como se fosse a nossa própria guerra civil. Num lado, há negros. No outro, há pretos. Os pretos têm de ir embora. Eu adoro negros, mas odeio pretos. Estou farto deles. Farto, farto, farto”, clamava o actor.
Poucos anos antes de Bring the Pain, no início dos anos 90, os norte-americanos NWA (Niggaz With Attitude), um grupo de gangsta-rap, apropriou-se do termo nigger, expurgando a carga negativa da palavra. Desde então, muitas bandas de hip-hop, como notou ao P2 o músico Kalaf Ângelo, tornaram cool o termo nigger. “Nessa cultura toda a gente se trata como ‘my nigga para aqui, my nigga para ali’”, disse, via Skype a partir de Luanda. Para Kalaf, porém, a “questão do preto ou negro” só lhe foi colocada quando veio para Portugal. A História ensinou-lhe que deve ser tratado por negro (”foi o que me ensinou a obra de Léopold Senghor e António Jacinto”), mas, quando chegou a Portugal, confrontou-se, pela primeira vez, com “a questão do preto ou negro”. Até porque em Angola a utilização da palavra preto não é “encarada de bom tom”, sobretudo quando aplicada em “relações de poder”.
A intenção está na atitude
Nos primeiros dias deste mês, os jornais noticiaram que o presidente da Junta de Freguesia de Benfica, em Lisboa, foi acusado de racismo por uma funcionária da autarquia. Glória Novais denunciou ser vítima de discriminação racial por parte de Domingos Pires, que lhe terá chamado preta. O autarca negou. Mas não foi a primeira vez que sofreu acusações de racismo. Há dois anos, o SOS Racismo instaurou-lhe um processo porque Domingos Pires recusou-se a receber a renda de uma inquilina do prédio que ainda hoje administra. Mamadou Ba, dirigente da associação, conversou com ele sobre o assunto: “Disse-me que a inquilina devia estar habituada às roças de São Tomé”.A reacção de Glória Novais à designação de preta seria diferente se o autarca lhe tivesse chamado negra? Ângela Barreto Xavier considera que, mais do que negro, o vocábulo preto é “provavelmente” interpretado como um insulto racial. Contudo, a historiadora sublinha que o “poder discriminatório” das duas palavras é semelhante, ressalvando a sua utilização em “contextos de produção e de interpretação distintos”.
Para Rui Pena Pires, sociólogo, a substituição de preto por negro não deixa de incorporar o “critério da estigmatização” - a “‘racialização’ das pertenças”. Não existindo qualquer “critério lógico” quando a valorização da cor da pele é feita para fazer distinções, Pena Pires recorda que as razões do racismo são efectivamente históricas, “remontando à legitimação dos poderes coloniais e esclavagistas”.
Saber quem diz, como diz e qual a intenção são os factores que Mamadou Ba, senegalês, realça neste problema de vocabulário. “Aquilo que está subjacente é que tem de ser analisado. As pessoas não têm cores. Interessa aqui saber a intenção de quem o diz e a carga, pejorativa ou não, está na atitude.” A questão de dizer negro ou preto é, portanto, “um falso debate”. “Não são os epítetos que importam, mas o que está por trás deles”, justifica.
No que diz respeito à hesitação que muitas vezes é notória quando surge o dilema de dizer negro ou preto, Mamadou Ba tem uma explicação: “A censura social está dentro da cabeça das pessoas”. Sobre este alegado impasse, Ângela Barreto Xavier confirma que tanto negro como preto encerram em si estigmas referentes a uma formação racial identitária e acrescenta que existe um “racismo latente” sempre que elas são ditas - basta atentar no facto de não se dizer branco, porque “é quase impensável colectivizar dessa maneira as populações de tez mais clara”.
“O problema inerente ao uso” dos dois termos consiste, explica, na “colectivização”, ou seja, “tomar por idêntico populações e pessoas que têm identidades distintas”. A investigadora do Instituto de Ciência Sociais (da Universidade de Lisboa) refere, neste âmbito, que se opta por dizer pretos e negros em detrimento da identificação natural (angolanos, moçambicanos, nigerianos). Esta atitude “tem alguma lógica, para além da discriminação racial (e da grande ignorância em relação à complexidade daquelas sociedades)”, questiona.
O antropólogo Miguel Vale de Almeida afirma que já ouviu brancos dizerem que preferem a palavra preto porque “supostamente é isso que os negros usam agora cada vez mais”. “Só que isso é auto-investir-se de uma intimidade social com o Outro minoritário que não pode existir, é uma falsa assunção de não racismo (como se ele pudesse ser deitado fora por mera vontade mental) e um não reconhecimento de que estas coisas de maiorias sociais versus minorias sociais é uma questão de poder, e uma questão de poder onde o simbólico (logo, a linguagem) tem uma importância crucial”, argumenta.
Questão lingüística
Para Mia Couto, porém, o problema não está nas palavras. Num texto que escreveu para a abertura do ano lectivo 2007/2008 no Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique, o escritor defendeu que a ideia de mudar a realidade através da alteração de palavras é falsa, designando-a como um dos “sete sapatos sujos” que devem ser abandonados “na soleira da porta dos tempos novos”.
E contou um episódio: “Uma vez, em Nova Iorque, um compatriota nosso fazia uma exposição sobre a situação da nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte, recebíamos uma espécie de pequeno dicionário dos termos politicamente incorrectos. Estavam banidos da língua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc… Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dizer ‘negro’ ou ‘preto’. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de monhé.”
O ideal, diz Rui Pena Pires, seria “acabar com designações raciais”, não procurando sequer uma “designação racial ideal”. “A ideia de que é possível encontrar essa designação”, explica, “baseia-se num equívoco, a saber, que o racismo consiste no tratamento desigual das diferentes raças. Contudo, e contrariando o senso comum, só há raças porque há racismo, ou seja, só é possível achar que a cor da pele é um traço significativo de distinção entre pessoas sendo racista, presumindo haver uma relação entre biologia e cultura.”
O “problema terminológico”, como lhe chama Pena Pires, subsiste. Por isso, há que encontrar soluções. O sociólogo avança com duas: recusar o uso de categorias raciais para “descrever as pessoas” e, nos casos em que surgem situações com origem em questões raciais, procurar usar os termos “menos estigmatizantes”. “O Portugal ideal”, disse, “seria aquele em que a cor da pele fosse tão (pouco) significativa para descrever pessoas como o é a sua altura”.
Por Maria José Oliveira
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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.