Retirado do site setor3.
Confira entrevista com Jô Brandão, da Coordenação Nacional de Quilombos, sobre o impacto da nova instrução normativa do INCRA nos processos de demarcação de terras dessa comunidade tradicional
15/10/2008 13h01min Juliana Rocha Barroso
A quilombola Jô Brandão, da Coordenação Nacional de Quilombos (foto: Elaine Tozzi)
“O governo Lula vai encerrar em 2010 e não vai titular nenhuma área quilombola. Já estamos no segundo mandato e não temos nenhuma área titulada a nível federal e isso não é porque as normas antigas eram frágeis, é porque regularizar área de quilombo no Brasil é desconstruir o racismo e o latifúndio e o governo ainda não mostrou competência para fazer isso”, declarou a quilombola Jô Brandão, da Coordenação Nacional de Quilombos (CONAQ), sobre a publicação da Instrução Normativa (IN) INCRA nº 49 no Diário Oficial da União, em 1º de outubro.
Atualmente em vigor, a nova instrução redefine etapas e responsabilidades nos processos de demarcação e titulação das terras quilombolas no Brasil. Entre elas, foram reduzidos os poderes do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que tinha a palavra final em qualquer conflito, função que passou para a AGU (Advocacia-Geral da União).
Em setembro, o movimento quilombola encaminhou à sede da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, uma comunicação, em que afirma que o governo brasileiro não tem respeitado os termos da Convenção 169 (documento que trata das questões dos povos indígenas e tribais), de que é signatário. Em 2007, o movimento também esteve presente a uma audiência temática na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA), em Washington, quando apresentou um relato da situação de lesão dos direitos quilombolas no Brasil. Jô explica que apesar de ter pautado uma política pública para quilombo através do Decreto 4887/03, na prática, o governo não efetivou algumas ações previstas. “São instrumentos políticos para também dar conhecimento internacional sobre qual é a opinião do movimento e apontar situações que temos vivido.”
Em entrevista ao portal Setor3, Jô fala sobre os impactos da mudanças para os quilombolas e comenta as declarações feitas por órgaos governamentais favoráveis à instrução.
Setor3 – Quais os pontos mais debatidos nos relatórios apresentados em Genebra e Washington?
Jô Brandão – O ponto mais debatido é em relação à consulta para a mudança da instrução normativa, que não satisfez a reivindicação anterior do movimento. Ela se deu com 300 quilombolas em Brasília, mas não está sendo dito que a CONAQ apresentou anteriormente uma proposta. Estamos vivendo no Brasil dois momentos de consulta pública baseados na Convenção 169. Um com relação à diversidade, em se discute uma consulta pública de direitos culturais. A outra é sobre o acesso ao patrimônio genético. E para isso, vão acontecer várias oficinas regionais, fora a consulta pública. No caso da consulta com relação às terras quilombolas, o governo não acatou essa idéia de tornar pública e fazer oficinas regionais, alegando falta de recurso e de tempo, só acatando a consulta com 300 quilombolas em Brasília. É uma contradição. Além disso, a fase da consulta já foi pautada em um documento elaborado só pelo governo, que trabalhou um grupo interno durante 90 dias. É a primeira vez no Brasil que uma instrução normativa do INCRA, que é um procedimento interno, administrativo, passa por um debate interno do governo todo, coordenado pela Advocacia-Geral da União. A idéia inicial era alterar o decreto e quando isso veio à tona, o Ministério Público Federal reagiu e o movimento quilombola também, então eles retrocederam e disseram: então vamos mexer na instrução normativa.
Setor 3 – Essa tentativa de mudança no decreto está sendo forçada por interesses políticos?
Jô Brandão – Está havendo uma pressão por parte do Paz no Campo, movimento ruralista formado por empresários e fazendeiros, empresas de monocultivo de soja, de cana-de-açúcar, de eucalipto, que têm uma boa parte de terras tradicionalmente ocupadas. E tem uma bancada de parlamentares ruralistas que têm dado entrada em projetos de lei para alterar o decreto. Por força dessa pressão o governo parou todos os processos para mexer nisso. Depois que nós exigimos o direito de participar da alteração da proposta conjunta, a consulta serviu para legitimar a proposta que o governo tinha feito sem a participação dos quilombolas. Mas nós não consentimos determinadas mudanças porque elas feriam nossos direitos, fomos para a consulta, fomos discutir e queremos que fique registrado que não consentimos. O governo manteve a proposta dele e publicou a instrução no Diário Oficial. É ela que vale hoje e todo o processo que está em andamento passa a ser regido por ela.
Um exemplo é o caso do Linharinho, no Espírito Santo, que já estava na fase de publicação. Já tinha sido publicada uma portaria. O INCRA do Espírito Santo errou, pois não notificou a Suzano, que é uma das partes envolvidas, e ela derrubou o processo. Cai a portaria e agora, com a nova instrução normativa, o processo do Linharinho começa de novo e a comunidade está prejudicada.
Setor3 – As funções do INCRA, que é o responsável pela demarcação e titulação das terras de quilombos no País, não são mais as mesmas. Qual o impacto disso?
Jô Brandão – O Conselho de Segurança Nacional passa a ter papel forte no processo, ou seja, há um monitoramento do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo e, inclusive, da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). No processo anterior, esses órgãos se manifestavam na medida em que essas terras fossem de fronteiras ou de segurança nacional, como, por exemplo, no caso de Alcântara, onde foi instalado um centro de lançamento. Este não é o caso do Linharinho, mas o GSI se manifestou. A única justificativa é porque ali existe uma multinacional, a Aracruz Celulose, com interesses econômicos internacionais e isso abala o governo. Nessa nova fase da instrução, essa intervenção vai acontecer através da AGU, que dirigirá uma câmara de conciliação para casos de sobreposição de interesses públicos. Então, o INCRA continua como órgão de regularização, mas sob monitoramento. É como se o movimento quilombola – os indígenas e outros grupos que lutam por terra já sofrem isso – passasse a ser grupo de ameaça à ordem brasileira.
Setor3 – Uma das alterações apontadas por você na instrução foi a mudança de nomenclatura de “território” para “terra”, que desfavorece a abrangência da questão quilombola. Explique.
Jô Brandão – O movimento quilombola acredita que a concepção de terra e território é diferente. Quando você discute a terra você se refere a um espaço físico, mas quando discutimos território estamos falando do modo de vida da comunidade. Falamos de um espaço de terra onde as pessoas têm produção, relações de parentesco, relações culturais, religiosas, festas, danças e uma relação com outros grupos sociais ao seu redor. O governo brasileiro está habituado a discutir a terra como um espaço onde um grupo se assenta, privadamente. No caso dos quilombos, não defendemos o lote ou o assentamento, defendemos a terra coletiva por esses aspectos culturais. E isso não foi acatado no processo de consulta.
Setor3 – A auto-definição era o critério para reconhecimento da comunidade como quilombola e agora depende da avaliação de um antropólogo. Quais outras alterações terão impacto nas conquistas dos quilombolas?
Jô Brandão – Por muito tempo, não só no Brasil, se concebeu a idéia de quem define determinado grupo social é a antropologia. Isso foi muito conflituoso e debatido pelos movimentos sociais a partir da idéia de que quem diz quem eu sou, sou eu mesma e o outro me reconhece ou não como quem estou me identificando. O princípio da auto-definição foi conquistado na Convenção 169 da OIT e isso não quer dizer que a gente está descartando a antropologia, mas reafirmando a idéia de que a antropologia descreve o grupo a partir de como ele se apresenta e não define o que é o grupo. O critério da certificação foi criado dentro do Decreto 4887 como uma tarefa da Fundação Cultural Palmares. Mas se eu estou dizendo que sou quilombola, ainda preciso que o Estado diga que eu realmente sou. Para chegar a esta certificação, tenho que fazer um mini-relatório do meu processo histórico. Nessa nova instrução normativa, além de se manter essa certificação da Palmares, coloca-se o papel do antropólogo como um intermediador, de fazer uma descrição da comunidade e a Palmares certificar, e de que só se abre processo administrativo de regularização de terra se a comunidade estiver certificada pela Palmares, ou seja, isso passou a ser um critério do processo. Se o governo achar que determinada área é conflituosa e vai trazer mais conflito ou é de seu interesse, ele pode impedir o início da certificação porque a Palmares é governo. Se ela disser que não certifica, o processo não começa nunca, o que fere profundamente o direito da comunidade, porque ela só pode solicitar do INCRA quando estiver certificada pela Palmares. O que o governo está alegando, em outras palavras, é que há muitas contestações com relação ao processo de regularização de quilombo e que eles precisam provar que a comunidade é realmente quilombola. Contestações com relação à regularização de terras quilombolas existirão sempre, mas isso é um retrocesso nos direitos.
Setor3 – Qual foi a posição da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) no sentido de defender os interesses dos quilombolas?
Jô Brandão – A SEPPIR se manifestou à imprensa. Não cabe a mim falar em nome do movimento, mas posso fazer uma análise política enquanto cidadã brasileira e quilombola. Pelo que li, eles se manifestaram dizendo que agora as coisas passam a ficar mais explícitas, mais fáceis e mais tranqüilas no processo. Eu discordo e adianto que a SEPPIR não vai se manifestar diferente porque mesmo sendo composta em sua maioria de pessoas negras, ela vai se posicionar enquanto governo. O que eu observei na fala deles à imprensa é que eles comungam da mesma idéia.
Gostaria de dizer que o que o governo brasileiro fez hoje não foi preservar o direito quilombola nem facilitar na regularização fundiária. Está fazendo mudanças para não desgostar os fazendeiros, cedeu a uma pressão e facilitou para o movimento ruralista a garantia das suas propriedades, que estão sobrepondo as terras tradicionalmente ocupadas no País.
Setor3 – No relatório à OIT vocês colocaram tudo isso? De que forma a ajuda externa neste processo, dando visibilidade internacional ao tema, pode contribuir para mudar esta situação?
Jô Brandão – É mais uma exposição política daquele que diz defender o direito, mas na hora não cumpre. E é importante politicamente para o Brasil colocar nessas instâncias de debates internacionais a posição contraditória do governo com relação aos nossos direitos, até porque outros países têm interesse no Brasil do ponto de vista econômico. O governo brasileiro tem propagandeado as terras férteis que temos para o monocultivo, principalmente no que diz respeito ao biodiesel, aos agro-combustíveis. Ao fazer esta propaganda, não diz que as terras que está ofertando são tradicionalmente ocupadas. Ou seja, se a Aracruz está plantando eucalipto no Brasil, ela está plantando nos quilombos, nas áreas indígenas, nos ribeirinhos, nas áreas em que vivem estas comunidades tradicionais. Estamos no meio de um debate econômico, mas também cultural e de direitos. É importante dizer para o mundo que o desenvolvimento econômico que estes países estão pleiteando no Brasil é em detrimento do direito humano das comunidades quilombolas e está acirrando conflitos.
Setor3 – Pela declaração do ministro interino da SEPPIR, Elói Ferreira de Araújo, ao jornal O Estado de S. Paulo: "As novas normas aparam arestas e eliminam dúvidas que emperravam o andamento dos processos de reconhecimento das terras.", entende-se que a norma agiliza e desburocratiza o processo. O que você diria sobre a declaração?
Jô Brandão – Pessoalmente, achei a declaração vergonhosa e desinformada. Fiquei profundamente decepcionada porque, enquanto quilombola e militante política do movimento, ajudei a construir a SEPPIR no sentido da defesa e da capacidade técnica e administrativa de fazer valer o direito quilombola, inclusive das políticas públicas. Acho uma tremenda contradição esta fala porque o que o governo brasileiro fez foi burocratizar o processo de regularização fundiária de quilombo para facilitar a vida do movimento ruralista. Desafiamos o governo brasileiro a demonstrar na prática quantas áreas quilombolas serão regularizadas daqui para frente. O governo Lula vai encerrar em 2010 e não vai titular nenhuma área quilombola. Estamos no segundo mandato e não temos nenhuma área quilombola titulada a nível federal e isso não é porque as normas antigas eram frágeis, é porque regularizar área de quilombo no Brasil é desconstruir o racismo e o latifúndio e o governo Lula ainda não mostrou competência para fazer isso. É muito mais fácil regularizar asssentamentos do que reconhecer o direito étnico e regularizar áreas coletivas, que vai fortalecer a cultura brasileira, mas não vai dar número para o governo. Nossa identidade virou uma peça comprovatória para dizer se temos direito à terra.
Para mim não seria nenhuma surpresa se nos próximos dias voltasse à tona o mesmo debate que a SEPPIR e a Palmares já fizeram no passado de que só serão reconhecidos como quilombos aqueles que se formaram após a Lei Áurea de 1888. Os quilombos não foram formados apenas após a Lei Áurea, foram iniciados muito antes porque o grande enfoque deles era a luta pela liberdade e pelo direito à terra, mas a história oficial do Brasil diz que só se formaram depois. Essa seria outra forma de dificultar o processo.
Setor3 – Ao dificultar o processo de reconhecimento da comunidade quilombola, o governo teria a obrigação de ser ágil na titularização das terras, assim que reconhecida. Vocês não podem usar esta lógica como ferramenta para cobrar?
Jô Brandão – Vou dar um exemplo: quando a rede Globo veiculou nacionalmente uma matéria questionando a identidade de São Francisco do Paraguaçu, o que a Fundação Palmares fez? Abriu uma instrução interna para rever o processo de certificação, inclusive sem consulta. Ou seja, que governo é esse que não reconhece a e não defende a identidade de seu povo? O São Francisco do Paraguaçu até hoje lida com constestações com relação à sua identidade por conta da matéria e nem teve o direito de resposta. Naquele momento ao invés do Estado brasileiro dizer que São Francisco do Paraguaçu estava reconhecido e certificado, colocou à prova, como se o instrumento da certificação fosse frágil e passível de fraude. Então essa nova instrução normativa dá firmeza e garantia ao movimento ruralista, para nós nenhuma segurança.
Para nós, a posição mais sensata, coerente e digna do governo teria sido, nas contestações ruralistas - que também têm seus direitos, mas não são eles que precisam de defesa - ter se manifestado dizendo que os quilombos são patrimômio cultural brasileiro e que, enquanto Estado, iria defendê-los. Estamos profundamente insatisfeitos com as mudanças, nos sentindo lesados. Até quando vamos ficar mudando normas e na prática não efetivando direito algum?
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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.