sábado, 17 de janeiro de 2009

O GENOCÍDIO NEGRO COMO POLÍTICA DE ESTADO

Retirao do sitdo IROHIN.
http://www.irohin.org.br/onl/new.php?sec=news&id=4050

NOTÍCIA
15/01/2009

Por Lio Nzumbi*

Anda circulando pelos meios da rapinagem midiática notas e reportagens que fazem alusão a um suposto acréscimo da violência em Salvador e região. Este enfoque tem como base informações estatísticas que contam através de órgãos oficiais (Central de Telecomunicações da Policia civil - Centel, o Centro de Documentação e Estatística policial – CEDEP dentre outros) o número de homicídios em nossa carnavalesca cidade. Ainda que a frieza dos números nos traga informações que a lógica matemática consagra como incontestes, a nossa atuação direta no enfrentamento à violência racial em Salvador e região metropolitana nos faz analisar com ressalvas estas notícias.

Os dados disponibilizados pela Centel revelam que, até o final da primeira segunda-feira deste ano (05/01/09), já foram assassinadas 50 pessoas, o que resulta numa média de dez mortes violentas por dia, o dobro do registrado no mesmo período de 2008. Embora esta contagem revele, desde 2005, o maior número de homicídios contados em um intervalo de cinco dias, não podemos deixar de entender que a primeira semana deste ano confirma uma tendência que vem se acentuando nos últimos anos (ver tabela).

NÚMEROS DE ASSASSINATOS EM SALVADOR
ANO
HOMICÍDIOS
2003
900
2004
840
2005
923
2006
1223
2007
1665
2008
2189
Fonte: SSP-Ba
As orientações ideológicas acumuladas pela Campanha Reaja ou Será Mort@! no enfrentamento à violência racial em Salvador e região nos permite entender este período que antecede o carnaval como um momento crítico. A brutalidade investida por parte do Estado contra comunidades da periferia soteropolitana se intensifica como modo de responder um ensejo racista não anunciado: a segurança d@s branc@s. O governo do Estado tem que mostrar serviço a quem atende; ainda mais neste período que antecede o carnaval. É necessário mais uma vez, através da desculpa de combate ao crime organizado, levar a cabo a “assepsia” racial que se admite empreender através de operações policiais apelidadas com nomes como “Saneamento1”, “Saneamento 2”... Embora essas incursões nos bairros negros da periferia soteropolitana lembrem muito um daqueles filmes de terror divididos em varias partes, não podemos deixar de entender que a política de segurança escolhida tem se aplicado de modo ininterrupto e que esta consiste em primeiro e ultimo plano, na geração de uma pilha gigantesca de cadáveres negros.
Por outro lado é também importante dizer que a contagem macabra de corpos negros pode até render milhões ($$$) em pesquisas cientificas, elaboração de “políticas públicas” e audiência para estes programas sensacionalistas de meio-dia, mas não dá conta de decodificar a dor que estamos sentindo em nossas comunidades. Igualmente importante, é dizer que esta dor não corresponde apenas ao acréscimo do numero de homicídios.

Aquilo que se consagra como expressões mais diretas do que entendemos como violência racial pode ser também flagrado no modo em que se orienta o padrão racista de suspeição policial, no cumprimento da ação de busca nos bairros de periferia, nos espancamentos e na pena de morte executada e/ou permitida por agentes do Estado, na parceria da policia com os grupos paramilitares no tratamento diferenciado para a execução de sentenças e cumprimento de pena nos estabelecimentos prisionais baianos, na criminalização midiática da comunidade negra e na industrialização do crime através da privatização das prisões e da venda de drogas e armas.

São muitas as evidências do genocídio deliberadamente articulado por aqueles que zelam pela manutenção da ordem sócio-racial vigente. O fato de a comunidade negra constituir maioria populacional na Bahia não justifica o modo como estamos sendo tratados nas ruas, favelas e instituições carcerárias do estado; muito menos essa idéia de que os números não estão sendo manipulados como na “Era ACM” pode servir para assegurar aos setores governistas um sono tranqüilo.

A irrefreável matança da “Bahia de Todos Nós” - uma análise de conjuntura necessária
De fato, ninguém pode negar que a segurança pública tem imposto desde o inicio da atual gestão do governo do estado uma dinâmica que nenhum discursozinho governista é capaz de escamotear. Justamente neste período que antecede o carnaval no primeiro ano do governo de Wagner denunciamos a tendência genocida que estava se mantendo tanto no âmbito da Secretaria de Segurança Publica (SSP) como no que diz respeito à Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH). A manutenção dos quadros de comando e cargos de confiança nas polícias do estado e a permanência da violência cotidiana expressa através das ações de milícias e esquadrões policiais em nossas comunidades naquele período que marcou a transição de governo já davam sinais da carnificina que estaria por vir. Muitos setores diziam que a nossa fala partia de uma concepção esquizofrênica e que era cedo pra falar da gestão de governo do “companheiro” já que este estava operando os ajustes de transição necessários para uma tal “Bahia de Todos Nós”.
No entanto, as nossas considerações confirmaram-se no decorrer do primeiro semestre de 2007. No dia 28 de fevereiro, policiais assassinaram o jovem aspirante da Marinha do Brasil, Edvandro Pereira de 19 anos, morador do Cabula. A campanha REAJA! continuou pautando através da sua rede de articulação comunitária a necessidade de construção de uma política de segurança diferente da que vinha sendo mantida. Ficamos conhecidos como “os do contra” e muitos daqueles que se posicionaram no governo passado como nossos aliados se transformaram com grande facilidade em nossos adversários políticos.
Intensificou-se um processo de criminalização da Campanha REAJA! que pôde ser comprovada no assassinato de MC Blul sob a justificativa de que este estaria envolvido em atividades ilícitas do trafico de drogas. Mesmo diante de diversas retaliações políticas, a campanha se manifestou das mais variadas formas. Em audiência com o secretário de Promoção da Igualdade Racial e o secretário de segurança publica protocolamos um contraponto à política que estava sendo adotada. Em âmbito local apresentamos um balanço da situação para o Ministério Publico, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores da Cidade de Salvador, Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados foram alertados através de um documento assinado pelo conjunto de organizações que integravam acampanha REAJA.
Foi também entregue um levantamento da situação ao relator especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre Execuções Arbitrárias, Sumárias ou Extrajudiciais, Philip Alston. Provocamos estas instituições para se manifestarem frente aos acontecimentos e a conjuntura atual da segurança pública em Salvador e região que tem colocado a população negra como refém de grupos policiais e paramilitares em nossas comunidades. Chacinas como as que aconteceram no Calabetão, Bairro da Paz e Auto de Coutos evidenciam a postura do Estado frente ao nosso genocídio. A ocupação militar de bairros como o Nordeste e a agressão sofrida pelo Mestre Guiguio, cantor e compositor do Ilê Aiyê apesar de não se constituírem como fatos isolados serviram para que tomássemos mais uma vez as ruas.
No dia 3 de outubro, em resposta ao nosso posicionamento o governador nos disse em audiência que seria importante a nossa contribuição na formulação de um projeto integrado de política publica e que este poderia se dar através de um seminário . O humor macabro do governador então se materializou no seminário Segurança Pública e Promoção da Igualdade: Direito e responsabilidade de todos (as) nós, acontecido em agosto do ano passado.
No inicio de 2008, a intensificação da violência racial expressa nas mortes de alguns jovens negros serviram para que até mesmo setores contrários à nossa perspectiva admitissem o caráter racial da violência em Salvador e região. Mortes como a de Lucas dos Santos (16 anos), Djair Santana de Jesus (15 anos), Samanta Alves Pereira (4 anos), Robson de Souza Pinho (19 anos) e Ricardo Matos dos Santos (21 anos) fez com que varias comunidades de Salvador se mobilizassem e transformassem enterros de jovens negr@s mort@s pela polícia em marchas fúnebres movidas a protestos e indignação. Inúmeros atos foram realizados e a política racista de segurança empreendida pelo governo Wagner estava mais exposta do que nunca. Diante do acréscimo desenfreado das execuções sumárias e da continuidade de uma política carcerária racista, no dia 27 de maio de 2008 o Fórum Baiano de Juventude Negra, seguindo orientação do ENJUNE (Encontro Nacional de Juventude Negra) e balizado pelos pressupostos ideológicos da Campanha REAJA! impôs frente à Assembléia Legislativa do estado da Bahia uma audiência pública Em Defesa da Vida e da Liberdade da Juventude Negra. No entanto, rebeliões e protestos no interior do sistema carcerário baiano se intensificaram. Motins como o acontecido na Casa de detenção de Juazeiro se alastraram por todo o Estado. Além dos levantes decorrentes da superlotação e maus tratos em presídios e delegacias aconteceram também inúmeros protestos em instituições penitenciárias a exemplo das greves de fome da Colônia penal de Simões Filho.

Diante dos escândalos da Operação Navalha desencadeada pelo STF, as supostas desavenças com o delegado-chefe da Policia Civil – João Laranjeira, a crise da segurança pública agravada pelo assassínio de alguns jovens negros no primeiro semestre e protestos que expressaram a revolta de algumas comunidades de favela, o governo se viu na obrigação de ajustar a sua política de segurança. O então secretário de segurança pública, Sr Bezerra, foi exonerado e cedeu lugar para o ex-superintendente regional da Policia Federal no Estado – o delegado César Nunes. Nunes, por sua vez, assumiu a pasta com ares de que deveria solucionar a crise em que se encontrava a segurança estadual, sobretudo no que diz respeito aos elevados índices de assassinatos - principalmente na capital e região metropolitana - à acentuada precariedade estrutural das polícias Civil e Militar, à superlotação e às condições insustentáveis das delegacias.

A partir deste revezamento de cargos foi iniciada uma nova fase da conjuntura criminal na Bahia. O déficit de efetivos, os baixos salários e a falta de motivação de policiais civis e militares foram colocados como principais causas da tal “crise”, ao passo em que foi lançada uma campanha de combate intensivo aos traficantes através da “integração” das policias, da ocupação ostensiva das comunidades da periferia soteropolitana e do enrijecimento da repressão no sistema prisional baiano. O cumprimento de um mandato de busca por uma operação chamada “Big Bang”, a partir de uma ação conjunta do Ministério Público, Secretaria Segurança Pública e da grande mídia desencadeou inúmeras incursões de combate ao “crime organizado” nas penitenciárias e bairros da periferia soteropolitana. Foram cumpridos em apenas um dia 13 mandatos de prisão e 39 de busca e apreensão na PLB, Presídio de Lauro de Freitas, Vale das Pedrinhas, São Cristóvão, São Caetano e Liberdade. Além de drogas, dinheiro e armas apreendidas, a operação deixou um saldo de inúmeras agressões às comunidades negras de Salvador e acentuou a tensão nos bairros de periferia da cidade. No que diz respeito às apreensões no Corpo IV da Lemos Brito, nenhuma autoridade foi investigada além do diretor da penitenciária, Dr Luciano Patrício. Outras operações com este caráter foram empreendidas a exemplo das operações “Sol quadrado”, “Saneamento 1” e “Saneamento 2”. Os requintes neolombrosianos destas ações policiais demonstraram explicitamente a lógica racista da política de segurança que está em curso.

Como um dos principais motivos da crise da segurança pública estariam relacionados à precariedade das policias, foi entregue ao delegado-chefe da Policial Civil, Sr Joselito Bispo, e ao comandante da Policia Militar, Antônio Jorge Ribeiro, 201 novas viaturas. O padrão unificado das policias civil e militar reflete a lógica de integração entre as polícias defendida pelo César Nunes. Na mesma ocasião, o governador do Estado anunciou a incorporação de mais 3.200 policiais militares e de 161 agentes civis. Num pronunciamento diante do fórum permanente de entidades do Bairro da Paz, o secretário César Nunes sinalizou de maneira incisiva: “Vamos caçar os bandidos e eliminar, se for necessário. Acreditem na polícia!”.
Através de uma incansável campanha midiática e policial foram incrementados diversos ajustes na política criminal do Estado baiano. A possibilidade de assassinatos, agressões e de encarceramento massivo de jovens negros serem causados por ações arbitrárias da polícia e dos grupos de extermínio passou a ser sumariamente descartada pelas linhas de investigação dos órgãos institucionais (SSP, SJDH e etc) e da grande mídia. As chacinas, por exemplo, passaram a ser entendidas como ações decorrentes única e exclusivamente do tráfico de drogas. Como conseqüência da intensa repressão, prisões arbitrárias e autos de resistência forjados, elevaram-se de modo proporcional o número de policiais assassinados. Dados da SSP indicam que, de janeiro à agosto, para cada policial morto, pelos menos três autos de resistência foram registrados na Polícia Civil. Em 2008, ocorreram em média, a cada mês, 7,5 autos de resistência, números maiores que em 2007 (6,3) e 2006 (5,5). Este fato tem sido usado como justificativa para ações de extermínio por parte da polícia. Merece destaque entre as ações mais truculentas, as incursões da chamada Polícia do Sertão (Caatinga), que tem levado o terror à juventude negra soteropolitana no embalo do mote “Pai faz, mãe cria e a Caatinga mata!” facilmente legível nos veículos e artigos deste grupo policial. Em 2007, as polícias Civil e Militar mataram em Salvador pelo menos 76 pessoas sob a alegação de confrontos - 12,5% a mais que em 2006.

No final de novembro deflagrou-se uma rebelião no conjunto penal do município de Serrinha, localizado a cerca de 173 km da capital baiana. Os presos fizeram seis reféns, 2 agentes presidiários e 4 cozinheiras para exigir a efetivação de alguns dos seus direitos que lhes são negados. No dia 8 de dezembro, uma rebelião na Penitenciaria Lemos de Brito, decorrente de uma serie de transferências arbitrárias, mostrou mais uma vez a face racista do sistema carcerário. Além da criminalização da população carcerária intensificou-se também um processo de criminalização dos seus familiares retroalimentada todos os dias por programas sensacionalistas. Um deles fez inclusive vinhetas que dizem que “Na Bahia tem até Associação em defesa dos ladrões”, ao se referir certamente à ASFAP – Associação de Familiares e Amig@s de Pres@s. Uma vistoria realizada no Complexo Penitenciário da Mata Escura pôde constatar que 270 presos não tinham registro na Vara de Execuções, muitos cumprem pena de modo degradante em contêineres e um número indefinido está com pena vencida.

Mas do que um simples exercício de memória, pensar neste balanço nos cobra a necessidade de não nos furtamos diante da irrefreável matança em curso em nossas comunidades. Em dezembro do ano passado, a Campanha Reaja! se permitiu participar de uma articulação chamada Tribunal Popular – O Estado brasileiro no banco dos réus. Para além de um simples expediente dramático, o Tribunal Popular nos ofereceu a oportunidade histórica de subverter simbolicamente a lógica da ordem sócio-racial que nos faz maioria em ruas, favelas e instituições carcerárias deste país e colocar o Estado brasileiro no banco dos réus. Os dados acumulados em nossa militância permitiram que colocássemos sob os holofotes o que acontece aqui na Bahia e, ao mesmo tempo, participássemos de uma articulação nacional de vitimas do Estado brasileiro. No entanto todo nosso esforço parece ser ínfimo, diante do gigante que estamos enfrentando.
Recentemente, um comentário do secretário de segurança pública, após a realização de uma mega-operação que etiquetou como traficantes quatorze rapazes negros, em um bairro da periferia soteropolitana, causou um grande burburinho em alguns meios. O secretário falou com a firmeza que lhe é própria: “Se tem que tombar, que tombe do lado de lá”. Setores desavisados sobre a política de segurança em curso e algumas organizações que zelam à distância pelos “Direitos Humanos” interpretaram a fala do secretário como uma gafe, ou como um comentário infeliz que destoa em relação ao conjunto de políticas adotadas pelo “companheiro” Wagner. Outros se espantaram diante do pronunciamento. Para nós, que somos os principais alvos desta política, essa afirmação não deveria causar tanta estranheza; ela só ratifica e confessa o caráter genocida de uma elite que vê em cada jovem negro de periferia um inimigo em potencial; demonstra uma firmeza de quem sabe de que lado está.
O que está posto é uma conjuntura macabra, na qual, de um lado, o governo corre para jogar os cadáveres negros debaixo do tapete, antes que os gringos cheguem para curtir suas orgias e inúmeros segmentos sociais e organizações de direitos humanos silenciam, seja por puro comodismo, ou pela possibilidade de morder uma ou outra migalha. Encurralad@s por esta realidade, estamos nós, resistindo como podemos à ação avassaladora do rodo que ceifa cotidianamente a vida d@s noss@s. Se faz imperativo que neste momento nós nos articulemos em torno a uma movimentação de enfrentamento a esta guerra declarada contra a nossa gente. “Se alguém tiver que tombar, que seja do lado de lá!”. É isto, reagir pra não morrer!

*Lio Nzumbi é membro da Associação de Familiares e Amig@s de Pres@s da Bahia (ASFAP) e articulador da Campanha Reaja ou será mort@!

Um comentário:

Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.