5/1/2009,
Johann Hari: *The Independent* , UK
Quem imaginaria que em 2009, os governos do mundo declarariam uma novaGuerra aos Piratas? No instante em que você lê esse artigo, a Marinha RealInglesa - e navios de mais 12 nações, dos EUA à China - navega rumo aosmares da Somália, para capturar homens que ainda vemos como vilãos depantomima, com papagaio no ombro. Mais algumas horas e estarão bombardeandonavios e, em seguida, perseguirão os piratas em terra, na terra de um dospaíses mais miseráveis do planeta. Por trás dessa estranha história defantasia, há um escândalo muito real e jamais contado. Os miseráveis que osgovernos 'ocidentais' estão rotulando como "uma das maiores ameaças de nossotempo" têm uma história extraordinária a contar - e, se não têm toda arazão, têm pelo menos muita razão.
Os piratas jamais foram exatamente o que pensamos que fossem. Na "era deouro dos piratas" - de 1650 a 1730 - o governo britânico criou, como recursode propaganda, a imagem do pirata selvagem, sem propósito, o Barba Azul queainda sobrevive. Muita gente sempre soube disso e muitos sempre suspeitaramda farsa: afinal, os piratas foram muitas vezes salvos das galés, nos braçosde multidões que os defendiam e apoiavam. Por quê? O que os pobres sabiam,que nunca soubemos? O que viam, que nós não vemos? Em seu livro *Villains OfAll Nations*, o historiador Marcus Rediker começa a revelar segredos muitointeressantes.
Se você fosse mercador ou marinheiro empregado nos navios mercantes naquelesdias se vivesse nas docas do East End de Londres, se fosse jovem e vivessefaminto-, você fatalmente acabaria embarcado num inferno flutuante, degrandes velas. Teria de trabalhar sem descanso, sempre faminto e sem dormir.E, se se rebelasse, lá estavam o todo-poderoso comandante e seu chicote[ing. *the Cat O' Nine Tails*, lit. "o Gato de nove rabos"]. Se vocêinsistisse, era a prancha e os tubarões. E ao final de meses ou anos dessavida, seu salário quase sempre lhe era roubado.
Os piratas foram os primeiros que se rebelaram contra esse mundo.Amotinavam-se nos navios e acabaram por criar um modo diferente de trabalharnos mares do mundo. Com os motins, conseguiam apropriar-se dos navios;depois, os piratas elegiam seus capitães e comandantes, e todas as decisõeseram tomadas coletivamente; e aboliram a tortura. Os butins eram partilhadosentre todos, solução que, nas palavras de Rediker, foi "um dos planos maisigualitários para distribuição de recursos que havia em todo o mundo, noséculo 18 ".
Acolhiam a bordo, como iguais, muitos escravos africanos foragidos. Ospiratas mostraram "muito claramente- e muito subversivamente- que os naviosnão precisavam ser comandados com opressão e brutalidade, como fazia aMarinha Real Inglesa." Por isso eram vistos como heróis românticos, emborasempre fossem ladrões improdutivos.
As palavras de um pirata cuja voz perde-se no tempo, um jovem inglês chamadoWilliam Scott, volta a ecoar hoje, nessa pirataria *new age* que está emtodas as televisões e jornais do planeta. Pouco antes de ser enforcado emCharleston, Carolina do Sul, Scott disse: "O que fiz, fiz para não morrer.Não encontrei outra saída, além da pirataria, para sobreviver".
O governo da Somália entrou em colapso em 1991. Nove milhões de somalianospassam fome desde então. E todos e tudo o que há de pior no mundo ocidentalrapidamente viu, nessa desgraça, a oportunidade para assaltar o país eroubar de lá o que houvesse. Ao mesmo tempo, viram nos mares da Somália olocal ideal onde jogar todo o lixo nuclear do planeta.
Exatamente isso: lixo atômico. Nem bem o governo desfez-se (e os ricospartiram), começaram a aparecer misteriosos navios europeus no litoral daSomália, que jogavam ao mar contêineres e barris enormes. A populaçãolitorânea começou a adoecer. No começo, erupções de pele, náuseas e bebêsmalformados. Então, com o tsunami de 2005, centenas de barris enferrujados ecom vazamentos apareceram em diferentes pontos do litoral. Muita genteapresentou sintomas de contaminação por radiação e houve 300 mortes.
Quem conta é Ahmedou Ould-Abdallah, enviado da ONU à Somália: "Alguém estájogando lixo atômico no litoral da Somália. E chumbo e metais pesados,cádmio, mercúrio, encontram-se praticamente todos." Parte do que se poderastrear leva diretamente a hospitais e indústrias européias que, ao quetudo indica, entrega os resíduos tóxicos à Máfia, que se encarrega de"descarregá-los" e cobra barato. Quando perguntei a Ould-Abdallah o que osgovernos europeus estariam fazendo para combater esse 'negócio', elesuspirou: "Nada. Não há nem descontaminaçã o, nem compensação, nemprevenção."
Ao mesmo tempo, outros navios europeus vivem de pilhar os mares da Somália,atacando uma de suas principais riquezas: pescado. A Europa já destruiu seusestoques naturais de pescado pela superexploraçã o - e, agora, estásuperexplorando os mares da Somália. A cada ano, saem de lá mais de 300milhões de atum, camarão e lagosta; são roubados anualmente, por pesqueirosilegais. Os pescadores locais tradicionais passam fome.
Mohammed Hussein, pescador que vive em Marka, cidade a 100 quilômetros aosul de Mogadishu, declarou à Agência Reuters: "Se nada for feito, acabarãocom todo o pescado de todo o litoral da Somália."
Esse é o contexto do qual nasceram os "piratas" somalianos. São pescadoressomalianos, que capturam barcos, como tentativa de assustar e dissuadir osgrandes pesqueiros; ou, pelo menos, como meio de extrair deles algumaespécie de compensação.
Os somalianos chamam-se "Guarda Costeira Voluntária da Somália". A maioriados somalianos os conhecem sob essa designação. [Matéria importante sobreisso, em http://wardheernews.com/Articles_09/April/13_armada_not_solution_muuse.html:"The*Armada* is not a solution".] Pesquisa divulgada pelo *site* somalianoindependente *WardheerNews* informa que 70% dos somalianos "aprovamfirmemente a pirataria como forma de defesa nacional".
Claro que nada justifica a prática de fazer reféns. Claro, também, que hágângsteres misturados nessa luta - por exemplo, os que assaltaram oscarregamentos de comida do World Food Programme. Mas em entrevista portelefone, um dos líderes dos piratas, Sugule Ali disse: "Não somos bandidosdo mar. Bandidos do mar são os pesqueiros clandestinos que saqueiam nossopeixe." William Scott entenderia perfeitamente.
Por que os europeus supõem que os somalianos deveriam deixar-se matar defome passivamente pelas praias, afogados no lixo tóxico europeu, e assistirpassivamente os pesqueiros europeus (dentre outros) que pescam o peixe que,depois, os europeus comem elegantemente nos restaurantes de Londres, Parisou Roma? A Europa nada fez, por muito tempo. Mas quando alguns pescadoresreagiram e intrometeram- se no caminho pelo qual passa 20% do petróleo domundo... imediatamente a Europa despachou para lá os seus navios de guerra.
A história da guerra contra a pirataria em 2009 está muito mais claramentenarrada por outro pirata, que viveu e morreu no século 4º AC. Foi preso elevado à presença de Alexandre, o Grande, que lhe perguntou "o quepretendia, fazendo-se de senhor dos mares." O pirata riu e respondeu: "Omesmo que você, fazendo-se de senhor das terras; mas, porque meu navio épequeno, sou chamado de ladrão; e você, que comanda uma grande frota, échamado de imperador." Hoje, outra vez, a grande frota europeia lança-se aomar, rumo à Somália - mas... quem é o ladrão?
Fonte:
http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/johann-hari/johann-hari-you-are-being-lied-to-about-pirates-1225817.html
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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.