terça-feira, 23 de janeiro de 2007

FOLHA DIRIGIDA ENTREVISTA RENATO FERREIRA (LPP-UERJ)

Retirado do site do jornal da Folha dirigida

Um remédio temporário para desigualdades históricas

22/01/2008
Natália StrucchiA

dvogado e autor de estudo sobre as políticas afirmativas no Brasil, Renato Ferreira analisa as ações adotadas por universidades como a Uerj, afirma que o país precisa buscar a qualidade dos ensinos fundamental e médio na rede pública e diz que, mais do que incluir, o Estado precisa garantir a permanência dos estudantes beneficiados no ensino superior.
Em 2008, o sistema de cotas completa cinco anos de existência no Brasil. Esta forma de ação afirmativa foi instituída pela primeira vez pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 2003. De acordo com uma pesquisa feita pelo Laboratório de Políticas Públicas da própria instituição, desde então, 54 universidades federais e estaduais já adotaram algum tipo de ação afirmativa. Autor do estudo, o advogado Renato Ferreira explica que a política de cotas têm caráter temporário e foi criada para ajudar na redução das desigualdades entre negros e brancos no ensino superior.
"A melhoria dos ensinos fundamental e médio públicos é importante para todos os pobres e também para o negro. Não queremos sistema de cotas ‘ad eternum’. Ele se sustenta também por conta da emergência, da necessidade de promoção da diversidade. Cota não foi criada para durar para sempre. A efetivação das políticas ditas universais levam tempo, temos que lutar por elas, mas também temos que pensar nos excluídos de hoje para que não condenemos várias gerações a ficarem sem acesso ao ensino superior", defende.
O pesquisador ainda faz críticas às instituições que estão optando por conceder benefícios sociais em detrimento à questão racial. "Algumas universidades estão adotando o critério social achando que desta forma estarão reduzindo, de modo significativo, as desigualdades entre negros e brancos. Isto é uma falsa questão e se configura num retrocesso. Estão dando uma aplicação errada ao conceito de uma política de ação afirmativa, que tem o objetivo de promover a igualdade, sobretudo, étnico-racial. No caso do ensino superior, esta promoção tem na diversidade uma das grandes vantagens para todas as pessoas, não só para os negros".

Quantas universidades do país adotam algum tipo de ação afirmativa?
Renato Ferreira - Minha pesquisa analisa o ensino superior público. Não analisei ainda os dados do Programa Universidade para Todos (ProUni), que também institui uma ação afirmativa junto às universidades privadas que aderirem a este programa. Em todo o país, 54 universidades, entre federais, estaduais e municipais, já adotaram algum tipo de ação afirmativa, sendo que 33 delas adotam para negros. No Brasil, as primeiras universidades a adotarem uma ação afirmativa, na forma de um sistema de cotas, foram a Uerj e a Uenf, por conta de uma lei estadual, há cinco anos. Desde então, outras 52 instituições já criaram algum tipo de ação afirmativa.

Em que consiste uma ação afirmativa?
Ação afirmativa é uma política de promoção de direitos de um grupo historicamente excluído. No caso da educação superior, todas as pesquisas de órgãos oficiais abalizados mostram a diferença de acesso à universidade entre brancos e negros. No Brasil, há ainda uma tradição de que só a elite tem acesso ao ensino superior público, sobretudo, nos cursos de maior demanda. Sempre pensou-se em educar poucas pessoas no ensino superior público, que é tido como o mais conceituado. A demanda de estudantes é grande e o número de universidades públicas, por uma série de razões, inclusive devido à instituição de políticas neoliberais na educação, não acompanha esse crescimento. O número de estudantes cursando universidade é muito baixo. Os dados do Ministério da Educação (MEC) constatam que apenas 10,5% dos jovens entre 18 e 24 anos estão no ensino superior. Nesta estatística, o número de negros e indígenas é ínfimo. Isso ocorre devido ao desenvolvimento de uma educação elitista que funciona como espécie de filtro de talentos humanos, cristalizando discriminações estruturadas historicamente. Para explicar melhor o conceito de uma ação afirmativa, usarei o exemplo da política cotas de gênero nas candidaturas dos partidos políticos. Os partidos são obrigados a ter, pelo menos, 30% de mulheres entre o total de candidatos, isso porque elas têm, reconhecidamente, um histórico de discriminação e só puderam votar e serem votadas muito tardiamente no Brasil.

Muitos integrantes da área educacional defendem a utilização das cotas sociais ao invés das raciais. O senhor acredita que as cotas sociais já são suficientes para inclusão dos negros?

Existem razões históricas para as desigualdades raciais no Brasil, que remontam, sobretudo, à ausência de adoção de políticas públicas para os descendentes de escravos. As estatísticas apontam que, dentre os pobres, o negro ainda é o mais pobre. Por isso, ações que queiram promover direitos, sem também levar em conta a enorme desigualdade racial, sozinhas, não resolverão o problema. No caso do ensino superior, se quisermos democratizar de fato as universidades, não existe uma única solução... É preciso que se tomem várias medidas. A melhoria dos ensinos fundamental e médio públicos é fundamental para o negro. Até porque a maioria estuda em escola pública. Não queremos que ninguém precise de cotas para sempre, e nem elas se prestam a isto. As mudanças estruturais necessárias levam tempo e temos que combater imediatamente a desigualdade existente hoje. Não podemos somente esperar a melhoria desse ensino público, que só deve vir daqui a uns 15 anos. Enquanto isso, gerações ficam sem acesso ao ensino superior. Temos que defender e lutar pela implementação das diversas políticas de democratização do ensino, como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e também para a implementação da Lei 10639, que trata da inclusão do ensino da História da África e dos Afro-brasileiros nas escolas. A ação afirmativa aponta para uma nova forma de justiça, que também precisa ser distributiva e assegurar às pessoas bens e direitos indispensáveis ao pleno desenvolvimento de sua cidadania. Ao adotar uma ação afirmativa somente para o estudante da rede pública e proporcionar a ele uma oportunidade de ascensão à universidade, é preciso ter em mente que tipo de rede pública se está querendo promover. O Rio de Janeiro é muito heterogêneo, temos crianças e adolescentes que não são negros e também não são pobres estudando em escolas públicas mais estruturadas (Cefets e CAPs, por exemplo) e que não estariam numa situação de discriminação histórica que justificasse conceder a eles uma ação afirmativa. Isso acontece em diversos estados do país. As vagas no ensino superior são reduzidas e é preciso saber de qual escola pública se está falando quando o assunto é ação afirmativa.


Qual a opinião do senhor sobre as cotas raciais?
Em relação ao negro, fica nítido que é por conta do racismo estrutural. Fator que se reproduz historicamente no Brasil por conta da não adoção de políticas públicas para os descendentes de escravos, do pós-abolição até os dias de hoje. As cotas visam ajudar na redução das desigualdades e na promoção da diversidade, que deve ser cada vez mais fundamental nos espaços de poder, ainda mais na educação superior. No Brasil, existe uma diversidade muito grande na população sim, mas quando analisamos alguns nichos de poder, como uma universidade, percebemos a ausência de negros. No Brasil inteiro há essa diferença racial. É preciso que tenhamos mulheres, homens, negros, indígenas e pessoas com deficiência em todos os espaços de poder. Todos os povos que formaram nossa população devem estar representados. O colonizador nos legou uma elite branca e os negros e indígenas na base da pirâmide social, e hoje, 120 anos depois da abolição da escravatura, continuamos com esse mesmo caráter. Temos que suplantar isto.

Esse sistema é realmente eficaz na diminuição da desigualdade entre negros e brancos?
Existem casos, por exemplo, de estudantes de Campo Grande que foram bons alunos na escola pública e conseguiram entrar na Uerj para fazer Direito, Engenharia. Muitos da Baixada Fluminense e da periferia do Rio de Janeiro. Estão em busca de estágio, daqui a pouco serão bons profissionais nas áreas que escolheram. Eles são um exemplo muito importante para outros membros de suas famílias e comunidade, que passam a acreditar e a ter um estímulo para buscar o ensino superior, ter uma profissão, progredir na vida através do estudo.

Quantas universidades adotam o sistema de bonificação e como ele funciona?De acordo com o estudo, sete adotaram o sistema de bonificação. A UFF vem adotando uma política afirmativa só para estudantes de escolas públicas, mas quem garante que todos os estudantes da escolas públicas são pobres e/ou negros?
Pode ser que este sistema beneficie estudantes que não precisariam disso e que poderiam disputar de igual para igual com os outros. Tenho dúvidas de que este modelo promoverá os negros de forma efetiva, porque os que mais precisam não estão nas escolas que conseguem dar um ensino público mais estruturado. O sistema de pontuação da Unicamp, por exemplo, dá ponto extra para o aluno. De acordo com o grupo que o estudante se declara pertencer, negro ou de rede pública, ele ganha mais pontos. Resta saber se esses pontos fazem diferença para ajudá-lo a ingressar. Quando se pensa na origem da ação afirmativa pelo mundo, não tem a ver com benefício, e sim promoção. A ação afirmativa não é para dar conta de todo o problema da exclusão. Na população brasileira, o número de negros é muito grande. É preciso ter por princípio essa idéia de promoção. Uma das minhas maiores críticas ao sistema de acesso ao ensino superior é por ele se reduzir ao vestibular. Entendo que ele não serve para aferir conhecimento. Neste sentido, ele é inconstitucional porque não mede a capacidade, como quer a Constituição da República. O vestibular não tem como avaliar o estudante que terá mais propensão a um melhor desempenho em determinada carreira e isso fere gravemente o que a Constituição quer. Existem pessoas que estudaram em boas escolas e não conseguem entrar porque não têm vagas para elas. Neste caso, a briga será entre as pessoas que estudaram em escolas mais estruturadas, mas não tiveram as mesmas condições de pagar por um cursinho preparatório caro. O programa de inclusão da USP não inclui a questão racial. Então, criaram um benefício para estudantes de escola pública, mas não dizem quantos negros ingressaram por este sistema. A UFRJ também discutiu a questão e foi contra, o que considero um absurdo. É preciso registrar que estive na UFRJ fazendo uma palestra. Estava na área de Saúde e passaram por mim cerca de 70 estudantes de Medicina. Em todo o grupo, não vi um negro. Que democracia é essa? O que vamos deixar para os que virão? Democracia que não tem a participação de todos é falsa, vazia. E aqui no Brasil nos acostumamos com esse tipo de democracia que existe apenas em alguns grupos, sobretudo na educação superior. E não reflete um Estado Democrático de Direito. Nós sabemos o papel importante que as universidades públicas têm na formação das novas elites. Por isto, precisamos ampliar e democratizar o acesso ao ensino superior.


Em 2007, o governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, sancionou uma lei que incluiu nas cotas da Uerj, os filhos de policiais, bombeiros e agentes penitenciários mortos em serviço, no percentual de 5% das vagas já reservadas para deficientes físicos e minorias étnicas. O que o senhor pensa sobre esta inclusão?
Esse grupo não é historicamente discriminado. Havia na verdade uma sobra de vagas nas cotas destinadas a pessoas indígenas e com deficiência. Por isso, eles incluíram esse grupo nas cotas. Acho que o Estado deve ter alguma política para essas pessoas que são filhos de pais que morreram em combate, mas não defendo que isto se faça por via do sistema de cotas numa universidade. Que se faça na Academia da Polícia Militar (APM), no corpo de bombeiros ou em outras escolas de formação de oficiais. A política de ação afirmativa tem a justificativa de promover quem realmente está excluído por uma razão histórica.

Na sua opinião, alguma coisa poderia ser mudada no atual sistema de cotas? O quê?
O desafio que a ação afirmativa traz para o Brasil é que ele consiga formar efetivamente sua população. No Rio, eu não mudaria nada, tem cinco anos apenas. Não existe um estudo efetivo sobre o que está acontecendo. Na parte de rendimento, não temos uma análise. Temos que esperar muitas turmas se formarem para podermos avaliar melhor. A Medicina ainda não formou a primeira turma com alunos que ingressaram pelo sistema de cotas. O sistema das universidades estaduais do Rio de Janeiro é um dos melhores. O que eu acho que está faltando é a criação de políticas de permanência para os estudantes. Temos que conjugar a flexibilização na entrada com a possibilidade de permanecer e concluir o curso. Uma coisa não pode se desenvolver sem a outra. Nesse estudo, verificamos que não existe nenhuma universidade que tenha adotado uma política de permanência satisfatória para os estudantes. O que demonstra que o Estado brasileiro precisa aprender a promover a inclusão. Me preocupa muito a discussão de uma coisa sem a outra. Há uma discussão muito grande de inclusão e nada de permanência. Não deveria ser assim. Infelizmente, me parece que o Estado aguarda que os estudantes demonstrem que estão com dificuldades para continuar seus estudos, para só então começar a fazer algo. Mas, apesar disso, acompanho com muita esperança a introdução de políticas de inclusão para minorias tradicionalmente excluídas no ensino superior. No Brasil, sem dúvida que isto representa um dos maiores avanços na promoção da cidadania e um dos maiores desafios para termos de fato a redução de desigualdades incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.