quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

‘Raças não existem, somos todos iguais’/Especial Consciência negra

Retirado do jornal Coreio da Bahia. Apesar da entrevista abaixo já ter acontecido há algum tempo, foi publicada em 20/11/07, serve para registrar no blog o que pensa um dos maiores adversários/inimigo das cotas e ações afirmativas diversas no Brasil.


Em 2001, o diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, despertou a fúria de parte da intelectualidade brasileira e de representantes de movimentos que se arvoram de defensores dos negros. Naquele ano, Kamel, um dos mais influentes jornalistas do país, lançou o livro Não somos racistas (Nova Fronteira), no qual critica abertamente a política de reparação tocada desde o governo FHC, por entender que a discriminação no Brasil não se dá pela cor da pele ou traços fisionômicos, e sim pela divisão entre ricos e pobres. Foi além: disse que as chamadas ações afirmativas – entre elas, a adoção de cotas nas universidades – despertariam o ódio racial no
futuro. Aos 44 anos, este descendente de imigrantes sírios continua sendo uma das poucas vozes a se posicionar contra medidas adotadas a partir da lente da raça. Vira e mexe, ainda é açoitado em blogs, sites e artigos publicados na grande mídia, sem contudo perder a fleuma e a verve. Pelo contrário. Contactado pelo Correio da Bahia para uma entrevista sobre o tema, Kamel não tergiversou. Abriu um espaço em sua agenda nada folgada para dizer que a única via possível de inclusão dos negros é através de políticas públicas de impacto transformador voltadas às camadas mais baixas da sociedade.
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Jairo Costa Júnior


Correio da Bahia - Desde 2003, a questão do negro se tornou bastante corriqueira em seus artigos publicados em O Globo. A partir de quando e por que você passou a se interessar pelo assunto?

Ali Kamel - Quando, em 2001, a Assembléia do estado do Rio de Janeiro aprovou a primeira lei de cotas para a Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), o assunto chamou a minha atenção. Aos poucos, fui me interessando mais e mais e solidificando a certeza de que combater o racismo reforçando a noção de raça não era uma coisa boa para o país. Não pode dar certo. Sou um anti-racista visceral, creio que o racismo deve ser combatido com tenacidade e os racistas postos na cadeia. Mas não considero o nosso país estruturalmente racista. Pelo censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 42% dos brasileiros se declaram pardos, miscigenados. Ou seja: em algum ponto de sua história foram o resultado do encontro de negros e brancos. Outro dado: 87% dos brasileiros têm uma ancestralidade genômica africana superior a 10%. Nos Estados Unidos, este número cai para 10%. Ou seja, apenas 10% dos americanos têm uma ancestralidade genômica africana maior do que 10%, contra quase 90% no caso brasileiro. Como falar que somos tão racistas quantos os americanos diante de dados como este? Nós somos um país miscigenado. Não há família brasileira que não tenha sangue negro. Como falar então que somos estruturalmente racistas? Isso não impede que haja racistas no Brasil. Há, e muitos e devem ser combatidos. Mas o Brasil, como nação, não é racista. A partir dessas constatações, decidi entrar no debate. Uma coisa que me espanta é a questão do pardo.

CB - Por que o espanto?
AK - Dizem que o Brasil é a segunda maior nação negra do mundo depois da Nigéria, mas só atingimos essa marca se os pardos são incluídos, ou seja, se o conceito de negro inclui os pardos. Os negros são 6% da população, os pardos 42%, o que dá 48% de negros (negros mais pardos). Os defensores de políticas de preferência racial juntam as duas categorias, porque dizem que ambas têm os mesmos índices socioeconômicos. Mas isso faz da gente a maior nação miscigenada no mundo, e não a segunda maior negra. Isso é motivo de orgulho, porque denota que somos tolerantes. Isso é um grande feito. Devíamos gritar isso para o mundo: somos a maior nação miscigenada do planeta. Mas a inclusão dos pardos só acontece quando querem inflar as estatísticas dos negros. Porque, na hora de colher os benefícios, os pardos são deixados de fora. CB - É o mesmo que dizer que tais definições de raça acabam gerando distorções...

AK - Veja o caso da UnB (Universidade de Brasília). Para entrar lá, por cota, você tem de ser pardo ou negro, mas sua feição até bem pouco tempo tinha de ser analisada por uma fotografia. Se você não tivesse o nariz achatado, o cabelo pixaim e a pele escura – estes termos são deles, não meus –, não entrava. Então, um pardo com cabelo liso, nariz afilado e mais claro de pele engorda as estatísticas de negros, mas não tem os benefícios que os negros têm. Isso é absurdo. Agora, depois que os gêmeos desmoralizaram a fotografia (um entrou e o outro, não, apesar dos mesmos critérios), adotaram uma entrevista ao vivo, uma espécie de tribunal racial. Uma coisa feia. No livro (Não somos racistas) relato o caso da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, em que 76 pardos ficaram de fora, porque não eram tão negros quanto deveriam (episódio ocorrido em 2003). Isso é nonsense.

CB - Muitos dos entusiastas das chamadas políticas públicas de reparação dizem crer que a sociedade só conseguirá atingir um patamar aceitável no processo de inclusão social dos negros, tratando “os desiguais de forma desigual”. Esta é a única via possível?
AK - Não, não é. É a via mais complicada e explicarei em instantes por que. De qualquer forma, não acredito que as políticas afirmativas sejam “políticas públicas de reparação”. Como reparar o horror da escravidão? Isso é irreparável. Os escravos, que sofreram um holocausto, estão mortos e não há como reparar isso. A tese de que é possível reparar a escravidão com políticas afirmativas permitiria também dizer que os brancos contemporâneos são os culpados pela escravidão, e isso é um absurdo. O historiador José Roberto Pinto de Góes, da Uerj, costuma dizer que o escravo que morreu no pelourinho está morto e nada que façamos hoje irá reparar o mal, o horror que foi feito a ele. No Brasil, uma nação miscigenada, a tese da reparação é ainda mais complicada. Tenho uma amiga cujo pai é negro, assim como toda a ascendência dele, e cuja mãe é branca, assim como toda a ascendência dela, de origem portuguesa. Ela herdou o fenótipo do pai. Mas, se a política de cotas for considerada uma política de reparação pelos danos causados aos ancestrais, como fica o caso dela? No benefício concedido a ela, estaremos reparando os horrores por que passaram os ancestrais do pai e premiando os horrores infligidos aos escravos pelos ancestrais da mãe? Essa discussão é bizarra. Na verdade, as políticas afirmativas não podem ser vistas como políticas de reparação.


CB - E devem ser vistas como, então?
AK - As políticas afirmativas devem ser vistas como políticas que visam à promoção socioeconômica dos negros do presente, tão somente, o que é um objetivo bastante nobre. O meu ponto é que o efeito colateral dessas políticas pode ser danoso. Se é verdade que os negros – incluindo os pardos – são a maior parte da pobreza, por que não fazer então políticas com corte de renda e não de raça? Sessenta e seis por cento dos pobres no Brasil são negros - novamente incluindo os pardos. Qualquer política que tenha como corte a renda e não a raça privilegiará os negros forçosamente, sem nenhum efeito colateral. Que efeito colateral é este? A eclosão do ódio racial, do rancor. Porque existem em nosso país 19 milhões de brancos pobres que serão marginalizados por essas políticas de preferência racial. Imagine uma favela onde um branco pobre conviveu sempre lado a lado com o negro pobre, dividindo as mesmas agruras, as mesmas dificuldades. O que esse branco sentirá quando vir que o filho do seu vizinho negro terá um acesso facilitado à universidade apenas porque é negro? Isso pode dar certo? Faz algum sentido? Não faz. Isso é potencialmente explosivo. O certo é fazer políticas que atendam a todos os pobres, de todas as cores. Sem reforçar a noção de raça.


CB - É claro que expressões como essa servem para que entusiastas da reparação justifiquem políticas como o sistema de cotas adotado em algumas universidades brasileiras. Tal sistema representa um avanço ou um retrocesso?
AK - Não creio que seja um retrocesso, mas não é aconselhável. Numa nação que não é estruturalmente racista, o melhor são políticas com corte de renda e jamais corte de raça, um conceito que a ciência já provou estar errado quando se fala de seres humanos. A beleza da humanidade é esta: raças não existem, somos todos iguais. O que difere, em termos de genoma, é apenas uma fração de 0,005 dos 25 mil genes que todos nós carregamos: os genes que determinam a cor da pele, a textura do cabelo, o formato do nariz. Ora, isso é um nada. Temos de insistir: somos todos iguais.


CB - É óbvio que tais políticas de reparação não conseguiriam emplacar sem o respaldo governamental. Quando esse processo começa no Brasil?
AK - Este processo começa com Fernando Henrique Cardoso, como mostro no meu livro. Ao contrário do que dizem que ele disse – “esqueçam o que eu escrevi” –, neste caso ele jamais esqueceu o que produziu quando era um jovem sociólogo. É no governo FH que tudo começa. E, claro, o governo Lula aprofundou isso. Mas é um ponto positivo que, até aqui, o Congresso não tenha tornado a coisa oficial. O que existem são ações isoladas de universidades federais e estaduais. Mas as leis que instituem oficialmente essa política ainda estão tramitando e não foram aprovadas ainda.


CB - Você disse há pouco que as cotas em universidades despertariam uma espécie de ódio racial, à semelhança do que aconteceu, e ainda acontece, em países como os Estados Unidos. Isso é mesmo possível de acontecer no Brasil?
AK - Eu não tenho dúvidas disso, infelizmente. Porque o ódio racial foi o que aconteceu em todos os países em que políticas de preferência racial foram adotadas. Malásia, Sri lanka, Índia, Nigéria, Ruanda, todos esses países sentiram isso na carne. Por que no Brasil seria diferente? Eu fico estarrecido quando leio notícias de que alunos brancos entraram na Justiça contra alunos negros. Fico estarrecido de saber que os banheiros da Uerj estão sendo pichados com frases racistas, coisa que nunca houve antes. Por que fazer políticas baseadas na raça, se podemos obter os mesmos resultados fazendo políticas que atendam os pobres em geral?


CB - O que você acha do binômio “brancos opressores-negros oprimidos”, largamente utilizado por algumas correntes ideológicas para afirmar que o racismo é institucionalizado no país?
AK - Isso é ridículo. Ofensivo. Um truque de retórica. Quem é branco e quem é negro nesse país? Repito, 87% dos brasileiros têm uma ancestralidade genômica africana maior do que 10%. Assim, como dizer quem oprime e quem é oprimido? O que existe no Brasil é a pobreza. O que existe no Brasil é o que eu chamo de classismo, o preconceito contra o pobre. Você pode ser branco, negro, amarelo, o que for; se for pobre, no Brasil, você está mal, será maltratado. Esta é a grande chaga brasileira. O classismo é maior do que o racismo. Um branco pobre, que se vista como pobre, que fale como pobre, que se comporte como pobre, será maltratado onde estiver ou onde tentar estar: num restaurante, numa repartição pública, no ônibus. É preciso ter isso em mente.


CB - Num Brasil claramente miscigenado, onde nos últimos tempos tenta-se dividir a sociedade entre brancos e negros, há uma tendência de polarizar para duas etnias a mistura racial que nos caracteriza enquanto nação. Qual a lógica por trás desse pensamento?
AK - É uma lógica cruel e que não vê as conseqüências futuras disso. É uma importação acrítica do que acontece nos Estados Unidos, onde vale até hoje, socialmente, a “one drop rule” (basta uma gota de sangue negro para alguém ser considerado negro: você pode ser branco de olhos azuis, se tiver parentesco com um negro, é negro). E então a sociedade se polariza entre negros e brancos. Aqui, ninguém liga para isso. Temos toneladas de sangue negro em cada uma de nossas veias. Pela regra social americana, seríamos todos negros. Aqui somos misturados e até pouco tempo atrás tínhamos orgulho disso. Era o nosso maior orgulho. Ninguém deve ter orgulho de ser 100% branco ou 100% negro. Temos de ter orgulho de sermos 100% humanos. Isso já é muito.

CB - O Estatuto da Igualdade Racial vem sendo tratado como o único instrumento capaz de corrigir distorções em relação a raças. Ele é realmente necessário?
AK - Ao contrário, ele é um mal para o país. A mim me parece um estatuto em muitos pontos parecido com o Apartheid sul-africano, embora, claro, seus autores tenham intenções diametralmente opostas. Mas ele tem um rigor obsessivo de classificar todos os indivíduos segundo a cor. Se você fizer um exame de sangue, terá de se declarar negro, pardo, branco. Isso é uma insanidade.

CB - Uma das questões que mais unem os movimentos em defesa dos negros diz respeito às estatísticas sobre violência. Na Bahia, e é bem capaz que tal modelo se repita em todas as grandes capitais do país, os negros, sobretudo jovens e de baixa renda, representam grande parte das mortes violentas. O que tais números escondem?
AK - Escondem os brancos pobres. Os negros são a maior parte da pobreza, porque nosso modelo econômico foi, e ainda é, concentrador de renda. Quem foi pobre tem uma grande chance de continuar sendo. São os pobres as maiores vítimas da violência. Se você fizer uma estatística, de fato encontrará que os negros são a maioria, porque eles são a maior parte da pobreza. Mas se você fizer um corte de renda, e não de cor, verá que a maior vítima da violência é o pobre em geral. O branco pobre é tão vítima da violência quanto o negro pobre. Não entendo essa mania de racializar tudo, de ver tudo sob o prisma da raça.

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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.