quarta-feira, 16 de julho de 2008

MILTON GONÇALVEZ AFIRMU "TENHO DIREITO DE FAZER UM SAFADO"

Retirado do site do jornal Estado de São Paulo.

Além de heróis e ricos em novelas, negros devem ser aceitos como vilões, defende Milton Gonçalves
Patrícia Villalba

Um dos grandes nomes da dramaturgia brasileira, Milton Gonçalves diz ao Estado que seu grande sonho, 50 anos de carreira depois, é que parem de chamá-lo de ''grande ator negro''. E fazia tempo que a rubrica ''negro'' não surtia tanto efeito num trabalho seu como agora, quando ele vive o político corrupto Romildo Rosa, na novela das 9 da Globo, A Favorita. Sujeito odioso e grande conhecedor dos corredores da República, o deputado é mestre em manejar recursos públicos em proveito próprio.
Se Lázaro Ramos comemorou a excelente aceitação do ''herói negro e gato'' Evilásio na novela anterior, Duas Caras, Gonçalves tem levado estocadas pesadas. Alguns questionam - e ao questionar já acusam o ator - se não seria desserviço à causa dos afrodescendentes, para usar um termo politicamente correto, apresentar na TV um negro corrupto. Cidadão militante, e não só da causa da igualdade racial, o ator se diz surpreendido pelo viés pelo qual o personagem vem sendo interpretado. E rebate: ''O estranhamento não vem do fato de Romildo ser negro e corrupto, mas do fato de ser negro e poderoso.''

Logo de cara, Romildo Rosa foi definido como ''um político negro e corrupto''. Até que ponto você acha que esse ''negro'' é importante?
Deixa eu contar uma coisa. A história que me foi plantada na cabeça quando eu era menino é que nós viemos de um continente selvagem. Mas, de repente, comecei a descobrir que nós, negros, participamos da formação deste mundo. Ao descobrir essas coisas e ao ter a felicidade de viajar um pouco mais do que imaginei que viajaria nesta vida, fui à África. E algumas coisas mudaram na minha cabeça. Descobri que não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro. Descobri que não sou africano, sou brasileiro. Então, não posso me segregar num país do qual o meu tataravô participou da construção. Não quero brigar para me segregar. Quero lutar pelo refazer a história do meu país. E refazer a história do meu país através das artes é procurar fazer todos os papéis. Romildo Rosa incomoda a sociedade branca, negra e política, não porque seja corrupto, mas porque ele é poderoso. O que incomoda é uma personagem negra ser tão poderosa na República. E o que incomoda o cidadão Milton Gonçalves é a não-aceitação desse corrupto negro, que é igual ou pior do que qualquer corrupto branco, amarelo ou vermelho. Na minha cabeça não entra que um insano venha me dizer que um personagem como esse possa, de repente, prejudicar a candidatura do Barack Obama. Isso é uma loucura. Outro insano vem dizer que é um desserviço que eu, Milton, estou prestando ao País. Outro, diz que eu poderia prejudicar candidatos negros nas próximas eleições. Se esse candidato for correto e digno, como é que uma personagem de televisão poderá prejudicá-lo? Quero ter o direito de fazer um personagem negro, corrupto, mau-caráter, safado. Não sei se ele vai se redimir, e nem me interessa. O que eu quero mostrar através do meu personagem é a infinita capacidade corrosiva do mau-caratismo e da corrupção, que pode estar em qualquer setor da sociedade.

O incômodo que Romildo causa é um preconceito ao contrário ou um politicamente correto ao extremo?
Com relação aos negros, é um preconceito introjetado. Nós, negros, muitas vezes não percebemos que praticamos o preconceito que tanto criticamos. Por outro lado, acho também que o que incomoda é que ele é um negro poderoso economicamente. Ele é um homem que sabe os segredos da Nação, negocia a podridão. Quantos deputados, prefeitos e governadores estão envolvidos em maracutaias por este país afora? É isso que incomoda: essa novela mete o dedo na ferida e quanto mais profundo for o meter o dedo na ferida, mais a novela será criticada. Um senhor deputado de São Paulo (José Cândido, do PT) disse que estou prestando um desserviço. E, ao mesmo tempo, declara que é o único deputado negro da Assembléia de São Paulo. É uma lástima. Seiscentos e tantos municípios no Estado e só um deputado negro. O personagem está ali para ser analisado, mas não pode ser desse jeito. É uma questão de analisar melhor em vez de ficar tendo faniquito.

O inacreditável é que a coisa ainda seja dividida assim, ''candidato negro'', ''grande ator negro''.
É uma restrição odiosa e desrespeitosa. A coisa que eu mais sonho na vida: quando da descrição de algum personagem, seja eliminada a rubrica ''ator negro'' ou ''atriz negra''. Quando eliminarem isso, teremos dado um salto qualitativo. Deixa eu te contar uma coisa: fiz Arena Conta Zumbi em Londres, quando meu filho Maurício morou lá. Num dia de folga, fomos ao Royal Shakespeare Theatre e, andando pelos corredores, vi uma foto de uma jovem atriz negra. Ela teria sido Ofélia, independentemente de ser negra ou branca. Vi outra foto, de um ator negro, jovem, que tinha sido Hamlet. O que eu quero dizer é que no país deles, dos ''conquistadores'', no que eles têm de mais refinado, que é o Shakespeare, uma atriz negra é honrada pelo seu trabalho sem que se chame a atenção para o fato de ela ser negra. Já vi, em Nova York, Don Quijote de la Mancha feito por negro e por japonês. Por que no Brasil sou chamado de ator negro? Um dos meus projetos, aliás, é fazer um Shakespeare no ano que vem. Se Deus quiser.

Até que ponto você acha que o biotipo deve ser limitador para um ator?
Depende do país. Na sua origem, a Ofélia era branca, porque ali não havia ainda mulheres negras. Mas no crescer da árvore, as coisas mudam. Há muitos anos, eu estava no portão do Palácio de Buckingham e vi um soldado negro na guarda da rainha. E ele não era ''pouca tinta'' como eu, era muita tinta mesmo. Deve ter tido problemas na vida, sofreu preconceito. Mas está inserido na sociedade. Obviamente, você procura atores para determinados personagens a partir do physique du rôle. Mas isso não pode ser limitador, ainda mais no Brasil, onde temos tantas misturas. Está lembrada quando dois gêmeos em Brasília entraram na universidade e um foi admitido pelo sistema de cotas como negro e o outro não? Você pode admitir isso? Que aberração é escolher alguém pela sua etnia? Quantos almirantes negros temos? Quantos brigadeiros? Quantos comandantes da Polícia Militar? A minha disponibilidade e defesa de personagens como Romildo Rosa é para que haja essa integração. Vamos brigar até o fim. Você alguma vez viu alguma festa com o significado, com a beleza e com a grandeza - evidentemente respeitosa -, com que se celebrou os 100 anos da primeira leva de japoneses que chegou ao Brasil? Você viu isso com algum negro? Ou foi só aquela coisa de baticum pra cá e pra lá? Não estou pedindo esmolas. O meu tataravô ajudou a construir este País e ele merece respeito.

Você está na Globo desde a fundação da emissora, há 43 anos, e sempre lutou por papéis que fossem além do estereótipo do negro. Nessa trajetória, você consegue ver o Romildo como um divisor de águas no que se refere à representação do negro na TV?
Não acho. Ele é mais um personagem. O que espanta é que ele tem poder. O Romildo despregou daquele patamar onde ele estava contido, ele foi além do que era permitido. E é isso que incomoda. Muitos daqueles que reclamam devem ter, de vez em quando, alguma similitude com o Romildo. Eu cheguei à Globo como ator, não aprendi a interpretar lá. Não é o primeiro vilão que faço. Teve um momento em que só eu fazia bandidos no cinema, e ninguém nunca reclamou. Já fiz novelas em que fui casado com brancas e com negras. Sempre procurei a diversidade de papéis - alguns não dá mais para eu fazer, porque já estou velhote. Agora, se for chamado, vou fazer todo e qualquer personagem bom - e não quero saber se é mau-caráter - porque eu sou ator em primeiro lugar.

O curioso é que na novela não se fala, em nenhum momento, sobre a etnia do Romildo e seus filhos, não se faz o tradicional discurso em torno da desigualdade racial.
Sim. E uma coisa que achei que fossem reclamar, e não reclamam, é da paixão do Romildo pela Arlete; a Alicia é apaixonada pelo Zé Bob e o meu filho, Diduzinho, é apaixonado pela Rita. Algum negro nos cerca? Não, são todos brancos. Achei que iam falar disso. E quero dizer que tenho falado para os meus diretores que faltam negros na platéia desse núcleo. Aí, eu até me permitiria dizer que você casa, se mescla, se mistura, na classe que você freqüenta. O Romildo Rosa, com toda a sua canalhice, circula numa classe onde é avis rara.

É verdade que você foi sondado pelo PMDB para assumir a Secretaria de Igualdade Racial?
É. Aventou-se essa hipótese, mas de saída eu não quis. O Edson Santos está lá agora. Mas por que ele não pode ser (ministro) da Fazenda? Da Saúde? Por que tem de ir para o departamento que vai cuidar de negros? Acho esse departamento muito estranho.

Tops da Carreira
ELES NÃO USAM BLACK-TIE (1957): Do teatro amador, ingressou no Arena, sua primeira e grande escola
A RAINHA DIABA (1974): Papel no longa de Antônio Carlos Fontoura é memorável
CARANDIRU (2003): Em 50 anos de carreira, foram mais de cem papéis no cinema
AMAZÔNIA (2007): Na minissérie da Globo, emissora que viu nascer, ele viveu Mestre Irineu


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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.