quarta-feira, 23 de junho de 2010

A COTA PODE PRODUZIR PAÍS RACISTA

Retirado do site Jornal Opção.
Um artigo de pessoas contrárias ao Estatuto.

Editorial
A luta do movimento negro é justificada, mas é preciso refletir a respeito de prioridades. As cotas sociais, que atenderiam negros, pardos e brancos pobres, são mais inclusivas do que a cota racial

Sob pressão da sociedade, governantes foram obrigados a criar uma legislação para proteger e acolher negros, porque o racismo adquiriu matizes profundos nos Estados Unidos. Sem um amparo rigoroso, os negros do país de Barack Obama continuariam sendo massacrados. Era um caso de vida ou morte. No magnífico romance “Homem Invisível”, Ralph Ellison, maior escritor negro dos EUA, comparável a qualquer outro escritor branco americano, como William Faulkner e Cormac McCarthy, dissecou, com mestria, o que é ser negro na terra de James Baldwin e Richard Wright. Quase ninguém queria vê-lo e integrá-lo — daí sua invisibilidade. As ações afirmativas e as leis rigorosas não acabaram, porém, com o racismo; em alguns casos, serviram para reforçá-lo. Mas eram mesmo necessárias. Porque, em alguns casos, apenas cadeia, a punição legal, pode conter a violência contra negros. A Ku Klux Klan foi destruída não necessariamente pela modernização da economia, e sim pelos rigores da lei, pela democratização efetiva da sociedade. Pois bem: o Brasil é igual aos Estados Unidos? Não é. Pelo contrário, estudiosos americanos ficam impressionados com a convivência relativamente pacífica do caldeirão racial brasileiro — no qual a mistura de pessoas de cores diferentes não é problema. Os sociólogos Ali Kamel (“Não Somos Racistas”) e Demétrio Magnoli (“Uma Gota de Sangue”) sustentam, baseados em ampla pesquisa, que o Brasil não é racista. É evidente que há atitudes racistas no país, camufladas ou não, mas o país em si não é racista. Não há perseguições deliberadas aos negros. Assim, determinados projetos, supostamente anti-racistas, podem acabar por fortalecer ou potencializar sentimentos racistas. A criação de um racismo institucional, decorrente de um amplo sistema de cotas, pode acabar por gestar um racismo das ruas. Uma guetização dos negros.

O movimento negro tem todo o direito de denunciar comportamentos racistas e, também, de defender mais espaço para os negros na sociedade. Mas na questão das cotas raciais talvez seja necessário refletir um pouco mais. Por que não criar, como sugere o senador Demóstenes Torres (DEM) — que felizmente tem coragem de enfrentar uma questão espinhosa, que, mal digerida ou usada com má-fé, pode tomar-lhe votos —, cotas sociais, em vez de raciais? As cotas raciais atendem diretamente os negros. Mas tendem a excluir brancos e pardos. A maioria dos pobres não é negra, embora muitos pobres sejam negros. Pode-se dizer que a cota racial é inclusiva e, ao mesmo tempo, excludente. Porque, se inclui os negros — a definição de quem é negro no Brasil é sempre delicada, tanto que algumas universidades, como a Universidade de Brasília (UnB), tiveram dificuldades nos seus vestibulares (numa família, um jovem foi beneficiado, por ter sido considerado negro, mas seu irmão gêmeo não foi considerado negro) —, exclui os brancos e pardos pobres.

O problema do Brasil é muito mais social do que racial, ainda que não se deva desconsiderar o preconceito racial, tênue ou não. Atitudes racistas, que são esporádicas e isoladas (não há um sistema racista, com integrantes), devem ser punidas exemplarmente — e, como se sabe, há uma legislação específica rigorosa e eficiente. Nos últimos anos, por conta do crescimento e do desenvolvimento da economia, o Brasil tem incluído dezenas de pobres, que se tornam integrantes das várias classes médias, digamos assim. Cotas, por si sós, não têm como incluir números grandes de pessoas. Especialmente porque, se os governos aplicarem mais em programas sociais, recuando os investimentos em infraestrutura, que são responsáveis pelo crescimento econômico, a médio prazo o desenvolvimento será comprometido. Programas sociais alimentam os pobres, mas não reduzem a pobreza, pelo menos não obrigatoriamente. Mas aqueles que escapam à pobreza, pelo mérito pessoal ou familiar, raramente aceitam o apoio público para comprar comida. Os negros que chegaram à classe média o fizeram pelo mérito, não por qualquer sistema de cotas.

O economista Marcelo Néri, chefe do Centro de Pesquisas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), disse ao repórter Fernando Canzian, da “Folha de S. Paulo” (domingo, 13), que, se mantidas as expectativas de crescimento da economia, “o Brasil cortará à metade o número de pessoas pobres até 2014. O total pode cair de 29,9 milhões para cerca de 14,5 milhões, o equivalente a menos de 8% da população. Nos anos Lula, até a crise de 2009, o número de pobres (pessoas com renda familiar per capita mensal de até R$ 137,00) caiu 43%, de 50 milhões para 29,9 milhões. Hoje, a velocidade da queda do número de pobres é ainda maior, de cerca de 10% ao ano”.

Canzian revela que “a diminuição do número de pobres e a ascensão de 31,9 milhões de brasileiros às classes A, B e C entre 2003 e 2008 estiveram relacionadas, principalmente, ao aumento do emprego formal e da renda do trabalho, à política de valorização do salário mínimo e aos programas sociais, como o Bolsa Família”. Mas os programas sociais não são decisivos. A economista Lena Lavinas, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, garante que “a pobreza no Brasil cai especialmente por conta da criação de vagas formais no mercado de trabalho”. O execrado “mercado” é, pois, o grande redutor da pobreza. Os programas sociais, ainda que necessários — porque há, é irretorquível, uma geração perdida, que dificilmente será absorvida pelo mercado; a salvação da maioria das famílias pobres são os filhos, que, pela educação, chegarão ao mercado qualificados ou relativamente qualificados —, não são vitais para acabar com a pobreza.

Portanto, a discussão sobre a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Senado, na semana passada, deve ser menos passional. Crucificar o senador Demóstenes Torres, ou qualquer outro, é um equívoco. Torres, ao enfrentar bizarrices típicas do espírito de Policarpo Quaresma que apossou-se do cérebro de alguns brasileiros, prova ser um político que tem coragem de confrontar o populismo. O jornal americano “New York Times” decidiu contratar negros para sua redação, não baseado no mérito, e sim num sistema de cotas, e descobriu que o método era ineficaz. Barack Obama não chegou à Presidência dos Estados Unidos por ser negro, por ter sido beneficiado por alguma cota racial, e sim pelo mérito, por ter se destacado na universidade e no mercado. Porque a sociedade americana premia o mérito. Quando o americano acumula seu primeiro milhão ganha festas; no Brasil, mesmo que tenha juntado o dinheiro honestamente, o indivíduo é chamado de “ladrão” e “traficante”.

Ficou fora do Estatuto o incentivo para a empresa que comprovasse ter pelo menos 20% de funcionários negros. Outra policarpo-quaresmice também recebeu veto: canais de televisão e peças publicitárias não precisarão reservar 20% de espaço para negros. O Estatuto também não incluiu a aberração de que os partidos deveriam reservar 10% de suas candidaturas para negros. Se o Estatuto tivesse sido aprovado como alguns queriam, o negro acabaria sendo tratado não como vítima de uma história perversa, que gerou a escravidão, mas como incapaz. Os negros não devem aceitar serem instrumentalizados política e ideologicamente.

O Estatuto, ao incentivar medidas afirmativas, talvez tenha dado uma colaboração muito maior aos negros e à sociedade brasileira. Ao contrário do que alguns jornais publicaram — a “Folha de S.Paulo” publicou uma reportagem absolutamente confusa e, assim, inepta —, o Estatuto não acaba com as cotas. O senador Torres afirma que outro projeto vai discutir se as cotas serão sociais ou raciais.

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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.