quarta-feira, 23 de junho de 2010

ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL: QUEM DIVIDE OS BRASILEIROS?

Retirado do interessante blog Pragmatismo Político.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Os detratores das políticas afirmativas contra a desigualdade racial vêem a ameaça de “racialização” do Brasil. Mas a divisão entre brasileiros de pele clara e pele escura está enraizada na escravidão e em suas marcas que sobrevivem e precisam ser superaras para soldar o fosso social em nosso país.

Mesmo mutilado, o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (dia 16) provoca reações alérgicas em setores conservadores da elite brasileira. O texto original foi desfigurado pelo relator, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) que retirou as referências às cotas na educação, à saúde da população negra, e o incentivo para a contratação de negros pelas empresas privadas.

Mesmo assim, o texto - que foi tema de um editorial no jornal O Estado de S. Paulo com o significativo título de “Poderia ter sido pior” - foi desaprovado por seus detratores com o argumento de que ele fratura a sociedade brasileira e promove a "racialização" do país, ou a criação de um "Estado racializado".

A divisão existe e seu reconhecimento é fundamental para corrigir uma fratura histórica e consolidar a democracia no país. O argumento da racialização é uma falácia que não resiste sequer a um exame superficial. Na verdade, o que os setores conservadores e aqueles que partilham sua opinião temem não é a criação artificial de divisões entre os brasileiros. Temem o reconhecimento institucional de sua existência como herança histórica da formação do Brasil e que persiste em nossos dias penalizando a parcela dos brasileiros que descende dos africanos escravizados durante os períodos colonial e imperial e que, por trazer na pele a marca dessa descendência, constituem os setores mais oprimidos da população brasileira.

O racismo brasileiro tem características próprias e é tão perverso quanto todas as outras formas de hierarquização das populações com base em características corporais, supondo a superioridade daqueles que têm pele clara e a inferioridade dos demais. Entre estes traços está a definição da "raça" (que não é biológica, mas histórico-social) a partir da aparência e não da origem. Isto é, no Brasil, uma pessoa de pele clara é considerada branca, criando aquilo que o historiador Clóvis Moura considerava como uma válvula de escape que permitia a incorporação ao grupo "superior" daqueles que, tendo origem índia ou africana, apresentassem traços europeus.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a definição de "raça" é diferente e não permite aquela válvula de escape pois, lá, o que conta é a origem e não a aparência, sendo considerado negro todo aquele que tiver um oitavo de sangue negro (isto é, aquele que tiver um bisavó negro), independente da cor de sua pele.

O racismo brasileiro nasceu sob a escravidão e mantém suas marcas. A definição "racial" pela aparência fundamenta a tese, falsa, de que aqui a escravidão teria sido amena e o preconceito racial inexistente - a tese da democracia racial, que passou a prevalecer no imaginário das classes dominantes a partir da década de 1930.

Uma outra característica do racismo típico de nosso país é aquela expressa através da frase antiga segundo a qual no Brasil não existe questão racial porque, aqui, o "negro conhece o seu lugar". A historiadora baiana Wlamyra R. de Albuquerque (autora de O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil) demonstrou como, nos anos posteriores à abolição da escravatura, esse lugar do negro foi sancionado socialmente através de uma combinação de consenso social dos setores privilegiados com repressão pura e simples contra os ex-escravos recalcitrantes àquelas imposições.

Em consequência, o Brasil não precisou de uma legislação segregacionista porque a ordem social segregadora estava introjetada em cada pessoa, levando-as a aceitar como natural uma separação que indicava a cada um o seu lugar e que, por isso, não precisava ser explicitada através da lei. Naturalidade ainda não banida de todo e que reaparece toda vez que a presença de um ser humano de pele escura em um ambiente de brancos provoque estranheza e mesmo manifestações de hostilidade aberta. Foram criados assim - sem serem explicitamente nomeados - espaços de branco e espaços de negros. São espaços geográficos e sociais. Um exemplo é a corriqueira separação, nos edifícios, entre elevadores "de serviço" e "social", estes virtualmente proibidos para pessoas de pele escura. Mas a separação é muito mais grave, e relegou os brasileiros de pele escura aos piores lugares, aos empregos mais humildes, desvalorizados e mal-remunerados, aos cortiços e favelas, à ausência da escola; abandonados à marginalidade, à miséria e à ignorância. Os shopping centers, os locais de moradia de "alto padrão", são espaços de branco, assim como as universidades. Daí a gritaria generalizada contra o sistema de cotas que representa um rombo no muro "racializado" que restringe aos brasileiros de pele escura o acesso ao ensino superior. Era o seu lugar, sancionado pela elite, pelos costumes e pela ciência social desde o final do século 19.

Ao contrário do que pensam os detratores do Estatuto da Igualdade Racial, a divisão é histórica e resulta da exploração do trabalho escravo; da forma como a escravidão foi abolida, sob controle da oligarquia latifundiária e escravista; e da ausência de políticas de promoção social capazes de integrar à nova vida os antigos escravos libertados em 1888.

A profunda desigualdade que teve origem no período escravista se manteve e atravessou o longo período que intermedeia o fim daquele instituto iníquo e nosso tempo, no início do terceiro milênio.

Essa divisão, que resulta da "racialização" da sociedade brasileira desde sua formação histórica, tem sido demonstrada por todas as estatísticas, reiterada e monotonamente. Argumentos conservadores muitas vezes ressaltam a melhoria das condições de vida da população de pele escura. Ela reflete, mostram dois estudos publicados pelo Ipea em 2008 (Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição e As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição, organizado por Mário Theodoro) a melhoria geral nas condições de vida da população brasileira, principalmente desde a redemocratização de 1985, acentuada na década de 2000.

A novidade trazida pelos estudos do Ipea é o fato de que, nesse quadro de melhoria geral, a distância que marca a desigualdade entre os segmentos brancos e negros permanece. No quesito renda familiar, entre 1987 e 2007, os brancos sempre tiveram rendimentos médios duas vezes maiores do que os negros - oscilou em torno de 2,4 vezes até 1999, e começou a diminuir após 2001 mas, mesmo assim, mantendo-se no mesmo patamar de duas vezes maior (2,06 vezes, no número exato). "Ou seja", dizem os pesquisadores, "a população branca ainda vive com um pouco mais que o dobro da renda disponível, na média, para a população negra".

Situação semelhante foi observada em relação à educação. Em 1976, 92% dos brancos sabiam ler e escrever e somente 78% dos negros - uma diferença de 14 pontos percentuais. Desde então a universalização do ensino fundamental reduziu drasticamente essa diferença e a diferença entre os dois segmentos caiu para apenas 2 pontos percentuais, uma melhoria significativa.

Entretanto, nesse mesmo período, a exigência de maior número de anos de escolaridade formal transformou-se num diferencial que se reflete em melhores oportunidades no mercado de trabalho. E a diferença entre brancos e negros se agravou quando se considera o ensino superior. Em 1976, 5% dos brancos tinham diploma universitário, contra apenas 0,7% dos negros. Em 2006, quando os negros alcançaram a marca de 5%, os brancos haviam avançado muito mais, chegando aos 18%. A diferença que era antes de 4,3 pontos percentuais, se acentou, pulando para 13 pontos.

A mesma fratura pode ser observada na situação no emprego. Os piores empregos, como ocorre desde o final do século 19, são ocupados majoritariamente por trabalhadores negros. Eles são 60% dos trabalhadores agrícolas, 58% na construção civil, e 59% dos empregados domésticos. São também a maioria dos trabalhadores não remunerados (55%) e sem carteira assinada (55%).

O brasileiro é um povo único, formado por seres humanos de origens diferentes que aqui se fundiram no traumático e violento processo da escravidão e de suas consequências históricas. Dada a forma como se deram as relações entre povos de origens diferentes, miscigenados sob o tacão do europeu, surgiu um povo que não pode ser diferenciado mesmo porque, numa mesma família, podem haver pessoas de pele clara e de pele escura, filhos dos mesmos pais e mães. Eles criam a situação existencial na qual irmãos de pele diferente não podem, evidentemente, serem partes de povos diferentes mas de um único e mesmo povo, o povo brasileiro.

O combate contra o racismo cresce na democracia. Hoje, o Brasil vive seu mais longo período democrático, e a luta contra a desigualdade se acentua traduzindo-se em conquistas institucionais que, para serem alcançadas, precisaram superar obstáculos historicamente constituídos e alicerçados. As ações pela igualdade cresceram desde a década de 1980, traduzindo-se em medidas tomadas inicialmente por governos municipais e estaduais e, depois de 1985 e da Constituição de 1988, pelo governo federal, e que se acentuaram depois do ano 2000, principalmente após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, envolvendo particularmente as universidades e o Ministério Público do Trabalho.
Um dos grandes obstáculos é a alegação, feita por detratores do Estatuto da Igualdade Racial, de que a igualdade pode ser alcançada naturalmente através das políticas sociais, sendo desnecessárias as políticas afirmativas. Chegam a alegar a inconstitucionalidade das políticas afirmativas pois criariam "privilégios" para a parcela da população beneficiada, rompendo a igualdade de todos perante a lei sancionada pela Constituição.

Contra estes argumentos, os estudos do Ipea demonstram a insuficiência das políticas sociais para eliminar a desigualdade decorrente da cor da pele, cujos limites foram expostos nestes 20 anos de experiência de universalização das políticas sociais. A lentidão da mudança é visível na constatação de que, mantido o ritmo atual, a igualdade na renda familiar só poderá ser alcançada em 2029 - daqui a duas décadas. É uma velocidade histórica "demasiadamente lenta", dizem os pesquisadores do Ipea. O combate à desigualdade racial exige mais que políticas sociais, e precisa ser acelerado por políticas afirmativas que tratem os desiguais de forma desigual para que, no final, a igualdade no perfil da distribuição da renda seja alcançada. A implantação dessas políticas afirmativas vai depender de muita luta para superar os obstáculos sociais, e históricos, representados por conservadores como o senador Demóstenes Torres e O Estado de S. Paulo, marcas do atraso enraizado no passado escravista que - este sim - divide os brasileiros e oprime aqueles de pele escura. É um fosso social que precisa ser superado através de políticas específicas pela igualdade e não, como querem os conservadores, fechando os olhos para sua realidade trágica.

Por José Carlos Ruy

Um comentário:

  1. Oi, encontrei seu blog a pouco e gostaria de saber o q vc acha dos mestiços, o do suposto movimento dos pardos no Brasil. bem eu sou descendente de africanos e brancos e me encontro numa situação dificil quando me pergutam minha raça..., se por um lado sou afrodescente mas do outro sou eurodescendente, onde fica minha identidade racial? ou devo adotar uma ascendecia em detrimento da outra?. no Brasil parece-me que atualmente pessoas na minha situação estão adotando descendencias conforme a coveniência da situação: qd me da vantagens sou negro e quando me tra desvantagens sou branco. qual sua opinião sobre isso?
    Agradeço a atenção.

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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.