A IMAGEM FIXA
(QUE, NO ENTANTO, SE MOVE)
A empregada branca e a intolerância tolerada
Por Eugênio Bucci em 13/5/2008
Foi assim que aconteceu. No final do ano passado, chegou ao apartamento em que moro, em São Paulo, um aparador, desses que a gente põe ao lado da mesa de jantar. Não estou seguro quanto à palavra, aparador. Talvez o nome seja buffet. Além de oferecer apoio para travessas durante uma refeição, o móvel é praticamente um armário, com portas para guardarmos pratos, copos e bebidas, além de algumas gavetas, úteis para toalhas de mesa, talheres etc. Chegou em casa por volta de outubro de 2007, mais ou menos. Contratei um lustrador profissional para limpá-lo, recuperar o verniz e dar um jeito nas dobradiças, que estavam enferrujadas. Eu tinha comprado um aparador com pés de ferro, o corpo em madeira clara, bonito, mas um tanto derrubado. Era uma peça dos anos 40.
Ao retirar as gavetas, o lustrador encontrou uma folha dupla de jornal antigo. Eram quatro páginas do Diário Popular, de São Paulo, com data do dia 2 de julho de 1947. Já estavam bastante amareladas, enrijecidas e quebradiças, ressecadas a ponto de esfarelar-se, mas sem sinal de traças. Era uma folha defunta, mas intacta, da seção de classificados. Manuseei com cuidado aquela relíquia do jornalismo pátrio. Desfiz as dobras com movimentos delicados para não estragá-lo ainda mais.
Um anúncio logo me chamou a atenção.
"EMPREGADA: [o título vinha todo em caixa alta].
Branca, precisa-se p/ cozinhar e lavar, não arruma, durma no emprego. Exigem-se referências e documentos. Paga-se bom ordenado. Rua Conselheiro Crispiniano, n º 29, 9º, apt. 92. Falar com Dona Helena."
Guardei meu pequeno tesouro, sem saber que utilidade ele poderia ter. Foi então que, dias depois, Adauto Novaes me telefonou para falar do ciclo "Vida Vício Virtude" que ele começava a preparar. Ele me convidou para fazer uma das conferências. O meu tema seria a intolerância. Foi aí que entendi os propósitos secretos daquele jornal que chegou ao meu endereço com 60 anos e alguns meses de atraso. Aquele velho anúncio era um registro de intolerância racial – e, ao estar solenemente publicado no Diário Popular, era também um registro da tolerância com que a sociedade brinda sua própria intolerância, fazendo parecer que ela não é tão intolerante assim.
A Dona Helena, a que devia ser procurada pelas candidatas ao emprego, não queria saber de domésticas que não tivessem a pele branca. Intolerância. Ao mesmo tempo, não hesitou em mandar pôr isso no jornal. Tinha segurança de que sua intolerância contaria com a tolerância dos contemporâneos. Nos anos quarenta, aquele jornal a autorizava a publicar seu veto às candidatas negras. O Brasil já não era um país escravagista, mas ainda admitia, no jornal, critérios explicitamente discriminatórios para a contratação de empregados.
Já pensando na palestra que eu teria que preparar, lembrei-me de que uma das faces da intolerância repousa justamente nessa mentalidade social que autoriza a patroa provavelmente branca a acreditar que provavelmente não era racista porque provavelmente não quisesse eliminar os seres humanos de pele escura, mas apenas quer manter uma distância segura de todos eles. "Nada contra ninguém", a Dona Helena diria de si, com sobrancelhas arqueadas, "mas os negros lá e eu aqui". O que ela não queria era "se misturar". A intolerância pode bem ser assim mesmo: uma resignação distanciada, um eles-lá-e-eu-aqui disfarçado de tolerância de cara fechada.
Quando fui enfim fazer a conferência, no início de maio 2008, comecei minha fala mostrando aos presentes a cópia daquele Diário Popular de 1947. Não há imagem mais fixa que uma letra impressa no papel
Claro que esse anúncio classificado, aqui reproduzido como imagem, é um retrato de seu tempo. Ele é um retrato da mentalidade de uma era. Não é uma fotografia. Tampouco é uma caricatura, um bico de pena – como se usava naqueles anos 40. Mesmo assim, como letra impressa, "letra de fôrma", retrata os valores e os limites da tolerância daquela época.
(QUE, NO ENTANTO, SE MOVE)
A empregada branca e a intolerância tolerada
Por Eugênio Bucci em 13/5/2008
Foi assim que aconteceu. No final do ano passado, chegou ao apartamento em que moro, em São Paulo, um aparador, desses que a gente põe ao lado da mesa de jantar. Não estou seguro quanto à palavra, aparador. Talvez o nome seja buffet. Além de oferecer apoio para travessas durante uma refeição, o móvel é praticamente um armário, com portas para guardarmos pratos, copos e bebidas, além de algumas gavetas, úteis para toalhas de mesa, talheres etc. Chegou em casa por volta de outubro de 2007, mais ou menos. Contratei um lustrador profissional para limpá-lo, recuperar o verniz e dar um jeito nas dobradiças, que estavam enferrujadas. Eu tinha comprado um aparador com pés de ferro, o corpo em madeira clara, bonito, mas um tanto derrubado. Era uma peça dos anos 40.
Ao retirar as gavetas, o lustrador encontrou uma folha dupla de jornal antigo. Eram quatro páginas do Diário Popular, de São Paulo, com data do dia 2 de julho de 1947. Já estavam bastante amareladas, enrijecidas e quebradiças, ressecadas a ponto de esfarelar-se, mas sem sinal de traças. Era uma folha defunta, mas intacta, da seção de classificados. Manuseei com cuidado aquela relíquia do jornalismo pátrio. Desfiz as dobras com movimentos delicados para não estragá-lo ainda mais.
Um anúncio logo me chamou a atenção.
"EMPREGADA: [o título vinha todo em caixa alta].
Branca, precisa-se p/ cozinhar e lavar, não arruma, durma no emprego. Exigem-se referências e documentos. Paga-se bom ordenado. Rua Conselheiro Crispiniano, n º 29, 9º, apt. 92. Falar com Dona Helena."
Guardei meu pequeno tesouro, sem saber que utilidade ele poderia ter. Foi então que, dias depois, Adauto Novaes me telefonou para falar do ciclo "Vida Vício Virtude" que ele começava a preparar. Ele me convidou para fazer uma das conferências. O meu tema seria a intolerância. Foi aí que entendi os propósitos secretos daquele jornal que chegou ao meu endereço com 60 anos e alguns meses de atraso. Aquele velho anúncio era um registro de intolerância racial – e, ao estar solenemente publicado no Diário Popular, era também um registro da tolerância com que a sociedade brinda sua própria intolerância, fazendo parecer que ela não é tão intolerante assim.
A Dona Helena, a que devia ser procurada pelas candidatas ao emprego, não queria saber de domésticas que não tivessem a pele branca. Intolerância. Ao mesmo tempo, não hesitou em mandar pôr isso no jornal. Tinha segurança de que sua intolerância contaria com a tolerância dos contemporâneos. Nos anos quarenta, aquele jornal a autorizava a publicar seu veto às candidatas negras. O Brasil já não era um país escravagista, mas ainda admitia, no jornal, critérios explicitamente discriminatórios para a contratação de empregados.
Já pensando na palestra que eu teria que preparar, lembrei-me de que uma das faces da intolerância repousa justamente nessa mentalidade social que autoriza a patroa provavelmente branca a acreditar que provavelmente não era racista porque provavelmente não quisesse eliminar os seres humanos de pele escura, mas apenas quer manter uma distância segura de todos eles. "Nada contra ninguém", a Dona Helena diria de si, com sobrancelhas arqueadas, "mas os negros lá e eu aqui". O que ela não queria era "se misturar". A intolerância pode bem ser assim mesmo: uma resignação distanciada, um eles-lá-e-eu-aqui disfarçado de tolerância de cara fechada.
Quando fui enfim fazer a conferência, no início de maio 2008, comecei minha fala mostrando aos presentes a cópia daquele Diário Popular de 1947. Não há imagem mais fixa que uma letra impressa no papel
Claro que esse anúncio classificado, aqui reproduzido como imagem, é um retrato de seu tempo. Ele é um retrato da mentalidade de uma era. Não é uma fotografia. Tampouco é uma caricatura, um bico de pena – como se usava naqueles anos 40. Mesmo assim, como letra impressa, "letra de fôrma", retrata os valores e os limites da tolerância daquela época.
Para ler na íntegra o artigo clique aqui.
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Muito axé e militância pessoal e obrigado pelos comentários.